domingo, 27 de outubro de 2013

Robert Darnton e a República das Letras. Uma análise de "Um inspetor de policia organiza seus arquivos: a anatomia da Republica das Letras"

 
 
 
 
Um conjunto de relatórios de um inspetor do comércio livreiro francês sobre os escritores da cidade de Paris no século XVIII. Esses relatórios - material empírico, documento primário – formado por pequenas biografias, informações sobre publicações e comentários pessoais sobre escritores investigados pela policia formam uma narrativa, contam uma história. Uma história construída a partir da visão de mundo de uma autoridade burocrática do Antigo Regime e inscrita numa estrutura de significados. Uma outra narrativa é construída por um outro autor – o historiador Robert Darnton – a partir da compilação das informações fornecidas pelo inspetor e que possibilitam o delineamento do perfil dos intelectuais do Alto Iluminismo. Esta narrativa é a identificação, análise e interpretação das estruturas de significação. Escolher códigos estabelecidos em uma determinada cultura e identificar de que forma estes são produzidos, lidos e interpretados pela mesma, qual a sua importância no contexto social e como os mesmos são transmitidos são os procedimentos da descrição densa (GEERTZ: 1989).
 
A classificação dos literatos seguindo as informações do policial em seus relatórios - local de nascimento, idade, ocupação social -, possibilitaram a Darnton, num primeiro momento, esboçar um perfil dos intelectuais no período do Alto Iluminismo. Mas não foram considerados por ele elementos suficientes para uma interpretação sobre o funcionamento do mundo literário e as regras do jogo na chamada República das Letras. Para além destes dados, digamos, estatísticos, os relatórios também contém pequenas histórias e comentários a respeito dos escritores do período. Se consideramos os relatórios como narrativa e o policial como um autor, não podemos esquecer que a mesma está imbuída de uma visão construída socialmente acerca dos escritores, sendo então necessário dar atenção ao discurso produzido pelo nosso policial acerca dos seus investigados.
 
O discurso é o ponto a ser discutido neste texto. Não o discurso do delegado de polícia Joseph d´Hémery, mas o discurso do historiador Robert Darnton. De que maneira o mesmo se apropria do seu material empírico de forma que sua interpretação seja coerente com sua proposta de trabalho explicitada na entrevista à revista Estudos Históricos: a importância da literatura na Revolução Francesa, o papel dos intelectuais, a difusão da palavra impressa e a opinião pública como uma força na criação de uma nova ordem democrática. E também como o mesmo utiliza os relatórios do delegado de policia para demonstrar que o que fomentou a Revolução Francesa foi a produção literária das gens sans état e não dos philosophes (DARNTON: 1987).
 
 
OS ARQUIVOS DE JOSEPH D´HÉMERY
 
 
Comecemos seguindo o caminho trilhado por Darnton. Um levantamento dos dados registrados a respeito dos escritores como o local de nascimento, data e ocupação social lhe possibilita fazer algumas conclusões. A partir da estrutura demográfica dos escritores incluídos nos relatórios, feitos entre os anos de 1748 e 1753, Darnton identifica um grupo relativamente jovem, “algo semelhante a uma geração literária” (DARNTON: 1986, 195). A maioria dos escritores era da própria Paris e a composição social demonstra que muitos puderam ser classificados dentro do critério sócio ocupacional, mas grande parte dos que não podiam ser identificados, pois não tinham ocupação profissional nem social definidas e dentro deste grupo não-identificável estavam a gens sans état.
 
Estas informações possibilitaram a construção de um determinado perfil da Republica das Letras, mas as histórias e anedotas registradas pelo delegado nos seus arquivos precisavam ser minuciosamente analisadas a fim de se entender a lógica de funcionamento desta Republica. E é este mundo que Darnton começa a destrinchar vendo os relatórios de d´Hémery como uma narrativa de um escritor iluminista em sua tentativa de ordenação do mundo social. Mas como ordenar um mundo, onde seu objeto principal – o escritor – não era visto ainda como uma categoria social ou uma profissão definida? E por que os mesmos precisavam tanto ser vigiados e controlados pela polícia? É apresentando os dados fornecidos pelo delegado de policia que o autor vai oferecendo aos seus leitores as informações necessárias para o conhecimento deste mundo. Ao mesmo tempo apresenta a lógica de trabalho do funcionário do Antigo Regime, quais os tipos de informações acerca dos investigados o mesmo considerava ser importantes e que precisavam ser registradas.
 
 
A própria função do delegado de polícia, a de inspecionar as publicações e conseqüentemente os escritores, já é bastante significativo para compreender o papel da literatura no processo intelectual e cultural que culminará na Revolução Francesa. Segundo Tocqueville, a França do Antigo Regime convivera com as tradições despótica e democrática simultaneamente. Ao definir as esferas pública - sob domínio do monarca absoluto, e privada - espaço do exercício da liberdade de consciência, o Antigo Regime deu vida às atividades produzidas nas academias de ciências, nas sociedades e salões literários. A liberdade de opinião estava restrita ao espaço privado e a figura do policial representa os limites da liberdade de opinião: a não invasão das mesmas no espaço público. Sem nenhuma participação na vida pública, as sociedades do Antigo Regime, vividas como uma experiência do livre pensar, estavam relacionadas à construção de idéias abstratas, sem nenhuma relação com a vida política.
 
 
O spirit de finese marca as formas de sociabilidade nos salões, clubes e academias literárias do Antigo Regime. Há uma valorização nas formas de comportamento, no modo de falar e de expressar o pensamento, um ideal de civilidade. O cultivo do bom gosto e da vida do espírito possibilitou uma nova forma de distinção e status social numa sociedade que não está aberta a todos. A participação na mesma pressupõe o estabelecimento de relações que possibilitam a inclusão/exclusão do mundo das letras funcionando dentro da lógica do prestígio, característica elementar do Antigo Regime.
 
 
Os arquivos do delegado revelam alguns pressupostos básicos sobre a vida literária no Antigo Regime. Sendo assim, as historias de proteção e privilégios adquiridos por determinados escritores não são de nenhuma forma consideradas desmoralizantes nos relatórios do delegado. Isto porque suas observações a respeito dos escritores protegidos, o status e privilégios adquiridos pelos mesmos fazem parte de um consenso comum, de uma lógica de funcionamento do mundo das letras reconhecida socialmente.
 
A lógica da proteção e do prestígio dentro das sociedades literárias acabou gerando uma massa de indivíduos sem função social definida na qual o delegado se refere como rapaz: indivíduos que não contavam com nenhuma proteção, vagavam de atividade em atividade, vinham geralmente do Terceiro Estado. Um termo que, segundo Darnton significava marginalidade e uma forma de classificar aqueles que não possuíam uma posição definida dentro da sociedade: os gens sans état. Darnton apresenta também os diferentes tratamentos e referências feitas pelo delegado de policia sobre seus investigados. As formas de tratamento e vocabulário utilizados pelo delegado permitem perceber que o mundo letrado não é uno e também definem quem representa ou não perigo para a sociedade. A partir deste ponto, o autor dá destaque aos relatórios onde se concentra o trabalho da polícia e quais são os escritores considerados perigosos e porque.
 
 
Voltemos então à questão da liberdade de opinião para entender o que era considerado perigoso para o delegado d´Hémery. O pensar livremente pressupõe uma forma de esclarecimento e a experiência de igualdade: os homens são iguais pelas idéias. Impedidos de participação na vida política, os homens de letras viam a restauração da paz e da harmonia na sociedade como produtos de uma reforma moral. Mas a crítica moral é uma forma indireta de participação política representando uma ultrapassagem do esclarecimento da esfera privada para a esfera pública.
 
Mas segundo Tocqueville, o pensamento destes homens, que não possuíam nenhuma experiência no campo da política ficava restrito ao campo que ele chamou de idéias abstratas. Estes homens apontavam os problemas e deficiências do Estado mas sugeriam apenas reformas e não mudanças. Acreditavam que estas deveriam ser implementadas por um príncipe esclarecido e iluminado pela razão, que garantisse as bases aristocráticas da sociedade já que os mesmos faziam parte da nova elite aristocrática e letrada que se formava na França. Sendo assim, estes homens que formulavam idéias abstratas aparecem nos relatórios do policial, mas seus comentários se restringem a análises pessoais sobre a forma de escrita e produção. Não representavam, portanto, nenhum tipo de perigo.
 
 
Os escritores considerados perigosos eram aqueles que publicavam panfletos e textos com criticas morais, os libelles. Textos que comprometiam a reputação, não de gente comum, mas de integrantes da aristocracia e do rei. Eram perigosos porque eram capazes de formar uma opinião pública crítica a respeito da aristocracia, denegrindo sua imagem. Esta era a percepção do inspetor do comercio livreiro: os panfletos desgastavam o respeito pelo regime e tornava a autoridade do rei cada dia mais vulnerável. A questão moral é ponto-chave no que diz respeito à revolução pois será através dela que os grupos excluídos e insatisfeitos irão demonstrar a decadência e corrupção do Antigo Regime. E para o delegado, a ameaça vinha das ruas.
 
Para Tocqueville, a revolução só foi possível porque as estruturas tradicionais do Antigo Regime já estavam abaladas. Os privilégios concedidos à nobreza de sangue haviam sido estendidos a outros grupos criando novas elites. A exclusão da maioria de grupos interessados em participar destas novas elites motivou as massas, pois os excluídos identificavam-se com a exclusão, os desiguais com a desigualdade. Segundo o autor francês o que motivou as massas foi o sentimento de paixão movido pelas ideias propagadas pelas elites literárias.
 
Identificados quais os tipos de produções literárias e quais os escritores considerados perigosos para o regime, surge a questão: porque Diderot é considerado “um rapaz inteligente mas extremamente perigoso”? Ele não escrevia libelles atacando a moral dos indivíduos ilustres da aristocracia nem do rei. Escrevia obras iluministas, trabalhando inclusive, na elaboração do seu Dicionário Enciclopédico. Seu perigo estava no que o delegado considerava sua irreligião e sua contribuição na disseminação do livre pensamento.
 
 
Mas de que forma irreligião e livre pensamento se tornam um perigo na concepção do delegado? A Revolução Cultural do século XVIII é o ponto final no processo de secularização iniciado no Renascimento. A filosofia iluminista rejeita o princípio da Revelação. Deus se revela nas suas obras: a natureza. A observação da mesma possibilita o desvendamento do mundo libertando o homem da superstição e das crendices. Há uma valorização da capacidade da razão humana, sua capacidade de pensar por si próprio. A opinião livre é um caminho para a libertação, pois há uma separação entre Verdade e Fé. Separando razão e religião, a moral começa a ser pensada independente da natureza religiosa. O mundo está por fazer-se e será feito através da ação humana no mesmo e para isso o conhecimento é um elemento útil. E o poder deve estar com aqueles que são capazes de pensar livremente e de agirem concretamente no mundo.
 
Por isso, o delegado não separava religião de política. Acreditava que a irreligião minava o poder da coroa a partir do momento em que questionava a autoridade do rei e de um Estado intimamente ligado à Igreja. Num mundo onde o escritor ainda não possuía uma posição profissional nem social definida, colocar libertins (livres pensadores) e libellistes (escritores de panfletos com críticas morais) num mesmo patamar de ameaça e perigo, significa dizer que os dois foram elementos contestadores da ordem, cada um à sua maneira. Ao mesmo tempo, incluir Diderot na lista dos “perigosos” é um elemento importante para entender que tipo de escritor merecia a vigilância constante da polícia. 
 
Darnton chama a atenção para o fato de Diderot ter sido chamado por d´Hémery de “rapaz”. Suas origens e sua história de vida serviram como uma referência para a atenção e vigilância do delegado. Um indivíduo sem definição específica na sociedade, um símbolo da desordem no meio de uma tentativa de ordenação de um mundo não só literário mas também social. E que também vivia acompanhado de outros escritores que estavam sempre produzindo textos contra a religião fazendo parte de uma corrente de libertins.
 
Para Darnton era do grupo da gens sans état que realmente provinha a verdadeira ameaça ao Antigo Regime. Seu argumento se fundamenta nos dados elaborados a partir dos relatórios que incluem as biografias e classificações feitas pelo delegado de policia. Com quem os escritores estabelecem relações, a origem social, ocupação profissional, local de moradia, os tipos de casamentos são informações importantes e não são destacadas no texto por acaso, pois servirão de elementos para Darnton apontar no final do artigo qual era o perfil do escritor considerado perigoso pela polícia e porque era considerado assim.
 
 
O fechamento do seu argumento de que o perigo e a verdadeira origem do movimento literário que irá culminar na Revolução Francesa está nos escalões inferiores da República das Letras se dá com a junção de seu “banco de dados” e as historias descritas pelo delegado, o que lhe permite elaborar um modelo padrão de escritor considerado uma ameaça. E termina com a transcrição dos relatórios sobre Diderot, Lambert e Montbron. Homens que como tantos outros foram incluídos nos arquivos da policia e que pertenciam ao que ele identifica como uma nova geração literária, homens excluídos do le monde e impulsionados pela paixão e não pelas ideias abstratas produzidas nas academias e salões literários. 
 
REFERÊNCIAS
 
DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
 
______________ Um inspetor de policia organiza seus arquivos: a anatomia da Republica das Letras. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

 
GEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, c.1989.
 
 
TOCQUEVILLE, Aléxis de. O antigo regime e a revolução.Brasília: Ed. Univ. de Brasília, c.1979.
 
Uma entrevista com Robert Darnton. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 4, 1989, p. 232-243.
 

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