Um
conjunto de relatórios de um inspetor do comércio livreiro francês
sobre os escritores da cidade de Paris no século XVIII. Esses
relatórios - material empírico, documento primário – formado por
pequenas biografias, informações sobre publicações e comentários
pessoais sobre escritores investigados pela policia formam uma
narrativa, contam uma história. Uma história construída a partir
da visão de mundo de uma autoridade burocrática do Antigo Regime e
inscrita numa estrutura de significados. Uma outra narrativa é
construída por um outro autor – o historiador Robert Darnton – a
partir da compilação das informações fornecidas pelo inspetor e
que possibilitam o delineamento do perfil dos intelectuais do Alto
Iluminismo. Esta narrativa é a identificação, análise e
interpretação das estruturas de significação. Escolher códigos
estabelecidos em uma determinada cultura e identificar de que forma
estes são produzidos, lidos e interpretados pela mesma, qual a sua
importância no contexto social e como os mesmos são transmitidos
são os procedimentos da descrição densa (GEERTZ: 1989).
A
classificação dos literatos seguindo as informações do policial
em seus relatórios - local de nascimento, idade, ocupação social
-, possibilitaram a Darnton, num primeiro momento, esboçar um perfil
dos intelectuais no período do Alto Iluminismo. Mas não foram
considerados por ele elementos suficientes para uma interpretação
sobre o funcionamento do mundo literário e as regras do jogo na
chamada República das Letras. Para além destes dados, digamos,
estatísticos, os relatórios também contém pequenas histórias e
comentários a respeito dos escritores do período. Se consideramos
os relatórios como narrativa e o policial como um autor, não
podemos esquecer que a mesma está imbuída de uma visão construída
socialmente acerca dos escritores, sendo então necessário dar
atenção ao discurso produzido pelo nosso policial acerca dos seus
investigados.
O
discurso é o ponto a ser discutido neste texto. Não o discurso
do delegado de polícia Joseph d´Hémery, mas o discurso do
historiador Robert Darnton. De que maneira o mesmo se apropria do seu
material empírico de forma que sua interpretação seja coerente com
sua proposta de trabalho explicitada na entrevista à revista Estudos
Históricos: a importância da literatura na Revolução Francesa, o papel dos
intelectuais, a difusão da palavra impressa e a opinião pública
como uma força na criação de uma nova ordem democrática. E também
como o mesmo utiliza os relatórios do delegado de policia para
demonstrar que o que fomentou a Revolução Francesa foi a produção
literária das gens sans état
e não dos philosophes (DARNTON: 1987).
OS ARQUIVOS DE
JOSEPH D´HÉMERY
Comecemos
seguindo o caminho trilhado por Darnton. Um levantamento dos dados
registrados a respeito dos escritores como o local de nascimento,
data e ocupação social lhe possibilita fazer algumas conclusões. A
partir da estrutura demográfica dos escritores incluídos nos
relatórios, feitos entre os anos de 1748 e 1753, Darnton identifica
um grupo relativamente jovem, “algo
semelhante a uma geração literária” (DARNTON: 1986, 195).
A maioria dos escritores era da própria Paris e a composição
social demonstra que muitos puderam ser classificados dentro do
critério sócio ocupacional, mas grande parte dos que não podiam
ser identificados, pois não tinham ocupação profissional nem
social definidas e dentro deste grupo não-identificável estavam a
gens sans état.
Estas
informações possibilitaram a construção de um determinado perfil
da Republica das Letras, mas as histórias e anedotas registradas
pelo delegado nos seus arquivos precisavam ser minuciosamente
analisadas a fim de se entender a lógica de funcionamento desta
Republica. E é este mundo que Darnton começa a destrinchar vendo os
relatórios de d´Hémery como uma narrativa de um escritor
iluminista em sua tentativa de ordenação do mundo social. Mas como
ordenar um mundo, onde seu objeto principal – o escritor – não
era visto ainda como uma categoria social ou uma profissão definida?
E por que os mesmos precisavam tanto ser vigiados e controlados pela
polícia? É apresentando os dados fornecidos pelo delegado de
policia que o autor vai oferecendo aos seus leitores as informações
necessárias para o conhecimento deste mundo. Ao mesmo tempo
apresenta a lógica de trabalho do funcionário do Antigo Regime,
quais os tipos de informações acerca dos investigados o mesmo
considerava ser importantes e que precisavam ser registradas.
A
própria função do delegado de polícia, a de inspecionar as
publicações e conseqüentemente os escritores, já é bastante
significativo para compreender o papel da literatura no processo
intelectual e cultural que culminará na Revolução Francesa.
Segundo Tocqueville, a França do Antigo Regime convivera com as
tradições despótica e democrática simultaneamente. Ao definir as
esferas pública - sob domínio do monarca absoluto, e privada -
espaço do exercício da liberdade de
consciência, o Antigo Regime deu vida às
atividades produzidas nas academias de ciências, nas sociedades e
salões literários. A liberdade de opinião estava restrita ao
espaço privado e a figura do policial representa os limites da
liberdade de opinião:
a não invasão das mesmas no espaço público. Sem nenhuma
participação na vida pública, as sociedades do Antigo Regime,
vividas como uma experiência do livre pensar,
estavam relacionadas à construção de idéias abstratas, sem
nenhuma relação com a vida política.
O
spirit de finese marca
as formas de sociabilidade nos salões, clubes e academias literárias
do Antigo Regime. Há uma valorização nas formas de comportamento,
no modo de falar e de expressar o pensamento, um ideal de civilidade.
O cultivo do bom gosto e da vida do espírito possibilitou uma nova
forma de distinção e status social numa sociedade que não está
aberta a todos. A participação na mesma pressupõe o
estabelecimento de relações que possibilitam a inclusão/exclusão
do mundo das letras funcionando dentro da lógica do prestígio,
característica elementar do Antigo Regime.
Os
arquivos do delegado revelam alguns pressupostos básicos sobre a
vida literária no Antigo Regime. Sendo assim, as historias de
proteção e privilégios adquiridos por determinados escritores não
são de nenhuma forma consideradas desmoralizantes nos relatórios do
delegado. Isto porque suas observações a respeito dos escritores
protegidos, o status e privilégios adquiridos pelos mesmos fazem
parte de um consenso comum, de uma lógica de funcionamento do mundo
das letras reconhecida socialmente.
A
lógica da proteção e do prestígio dentro das sociedades literárias
acabou gerando uma massa de indivíduos sem função social definida
na qual o delegado se refere como rapaz:
indivíduos que não contavam com nenhuma proteção, vagavam de
atividade em atividade, vinham geralmente do Terceiro Estado. Um
termo que, segundo Darnton significava marginalidade e uma forma de
classificar aqueles que não possuíam uma posição definida dentro
da sociedade: os gens sans état.
Darnton apresenta também os diferentes tratamentos e referências
feitas pelo delegado de policia sobre seus investigados. As formas de
tratamento e vocabulário utilizados pelo delegado permitem perceber
que o mundo letrado não é uno e também definem quem representa ou
não perigo para a sociedade. A partir deste ponto, o autor dá
destaque aos relatórios onde se concentra o trabalho da polícia e
quais são os escritores considerados perigosos e porque.
Voltemos
então à questão da liberdade de opinião para entender o que era
considerado perigoso para o delegado d´Hémery. O pensar livremente
pressupõe uma forma de esclarecimento e a experiência de igualdade:
os homens são iguais pelas idéias. Impedidos de participação na
vida política, os homens de letras viam a restauração da paz e da
harmonia na sociedade como produtos de uma reforma moral. Mas a
crítica moral é uma forma indireta de participação política
representando uma ultrapassagem do esclarecimento da esfera privada
para a esfera pública.
Mas
segundo Tocqueville, o pensamento destes homens, que não possuíam
nenhuma experiência no campo da política ficava restrito ao campo
que ele chamou de idéias abstratas.
Estes homens apontavam os problemas e deficiências do Estado mas
sugeriam apenas reformas e não mudanças. Acreditavam que estas
deveriam ser implementadas por um príncipe esclarecido e iluminado
pela razão, que garantisse as bases aristocráticas da sociedade já
que os mesmos faziam parte da nova elite aristocrática e letrada que
se formava na França. Sendo assim, estes homens que formulavam
idéias abstratas aparecem nos relatórios do policial, mas seus
comentários se restringem a análises pessoais sobre a forma de
escrita e produção. Não representavam, portanto, nenhum tipo de
perigo.
Os
escritores considerados perigosos eram aqueles que publicavam panfletos
e textos com criticas morais, os libelles.
Textos que comprometiam a reputação, não de gente comum, mas de
integrantes da aristocracia e do rei. Eram perigosos porque eram
capazes de formar uma opinião pública
crítica a respeito da aristocracia, denegrindo sua imagem. Esta era
a percepção do inspetor do comercio livreiro: os panfletos
desgastavam o respeito pelo regime e tornava a autoridade do rei cada
dia mais vulnerável. A questão moral é ponto-chave no que diz
respeito à revolução pois será através dela que os grupos
excluídos e insatisfeitos irão demonstrar a decadência e corrupção
do Antigo Regime. E para o delegado, a ameaça vinha das ruas.
Para Tocqueville, a
revolução só foi possível porque as estruturas tradicionais do
Antigo Regime já estavam abaladas. Os privilégios concedidos à
nobreza de sangue haviam sido estendidos a outros grupos criando
novas elites. A exclusão da maioria de grupos interessados em
participar destas novas elites motivou as massas, pois os excluídos
identificavam-se com a exclusão, os desiguais com a desigualdade.
Segundo o autor francês o que motivou as massas foi o sentimento de
paixão movido pelas ideias propagadas pelas elites literárias.
Identificados
quais os tipos de produções literárias e quais os escritores
considerados perigosos para o regime, surge a questão: porque
Diderot é considerado “um rapaz inteligente
mas extremamente perigoso”?
Ele não escrevia libelles
atacando a moral dos indivíduos ilustres da aristocracia nem do rei.
Escrevia obras iluministas, trabalhando inclusive, na elaboração do
seu Dicionário Enciclopédico. Seu perigo estava no que o delegado
considerava sua irreligião
e sua contribuição na disseminação do livre
pensamento.
Mas de
que forma irreligião
e livre pensamento se
tornam um perigo na concepção do delegado? A Revolução Cultural
do século XVIII é o ponto final no processo de secularização
iniciado no Renascimento. A filosofia iluminista rejeita o princípio
da Revelação. Deus se revela nas suas obras: a natureza. A
observação da mesma possibilita o desvendamento do mundo libertando
o homem da superstição e das crendices. Há uma valorização da
capacidade da razão humana, sua capacidade de pensar por si próprio.
A opinião livre é um caminho para a libertação, pois há uma
separação entre Verdade e Fé. Separando razão e religião, a
moral começa a ser pensada independente da natureza religiosa. O
mundo está por fazer-se e será feito através da ação humana no
mesmo e para isso o conhecimento é um elemento útil. E o poder deve
estar com aqueles que são capazes de pensar livremente e de agirem
concretamente no mundo.
Por
isso, o delegado não separava religião de política. Acreditava que
a irreligião minava o poder da coroa a partir do momento em que
questionava a autoridade do rei e de um Estado intimamente ligado à
Igreja. Num mundo onde o escritor ainda não possuía uma posição
profissional nem social definida, colocar libertins
(livres pensadores) e libellistes
(escritores de panfletos com críticas morais) num mesmo patamar de
ameaça e perigo, significa dizer que os dois foram elementos
contestadores da ordem, cada um à sua maneira. Ao mesmo tempo,
incluir Diderot na lista dos “perigosos” é um elemento
importante para entender que tipo de escritor merecia a vigilância
constante da polícia.
Darnton
chama a atenção para o fato de Diderot ter sido chamado por
d´Hémery de “rapaz”.
Suas origens e sua história de vida serviram como uma referência
para a atenção e vigilância do delegado. Um indivíduo sem
definição específica na sociedade, um símbolo da desordem no meio
de uma tentativa de ordenação de um mundo não só literário mas
também social. E que também vivia acompanhado de outros escritores
que estavam sempre produzindo textos contra a religião fazendo parte
de uma corrente de libertins.
Para
Darnton era do grupo da gens
sans état que
realmente provinha a verdadeira ameaça ao Antigo Regime. Seu
argumento se fundamenta nos dados elaborados a partir dos relatórios
que incluem as biografias e classificações feitas pelo delegado de
policia. Com quem os escritores estabelecem relações, a origem
social, ocupação profissional, local de moradia, os tipos de
casamentos são informações importantes e não são destacadas no
texto por acaso, pois servirão de elementos para Darnton apontar no
final do artigo qual era o perfil do escritor considerado perigoso
pela polícia e porque era considerado assim.
O
fechamento do seu argumento de que o perigo e a verdadeira origem do
movimento literário que irá culminar na Revolução Francesa está
nos escalões inferiores da República das Letras se dá com a junção
de seu “banco de dados”
e as historias descritas pelo delegado, o que lhe permite elaborar um
modelo padrão de escritor considerado uma ameaça. E termina com a
transcrição dos relatórios sobre Diderot, Lambert e Montbron.
Homens que como tantos outros foram incluídos nos arquivos da
policia e que pertenciam ao que ele identifica como uma nova geração
literária, homens excluídos do le monde
e impulsionados pela paixão e não pelas ideias abstratas
produzidas nas academias e salões literários.
REFERÊNCIAS
DARNTON,
Robert.
Boemia literária e revolução: o submundo
das letras no antigo regime. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
______________
Um inspetor de policia organiza seus
arquivos: a anatomia da Republica das Letras. O grande massacre de gatos e outros episódios
da História Cultural francesa. Rio de
Janeiro: Graal, 1986.
GEERTZ,
Clifford, A interpretação
das culturas.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, c.1989.
TOCQUEVILLE,
Aléxis de. O antigo
regime e a
revolução.Brasília:
Ed. Univ. de Brasília, c.1979.
Uma entrevista com Robert Darnton. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 4, 1989, p. 232-243.