domingo, 27 de outubro de 2013

Robert Darnton e a República das Letras. Uma análise de "Um inspetor de policia organiza seus arquivos: a anatomia da Republica das Letras"

 
 
 
 
Um conjunto de relatórios de um inspetor do comércio livreiro francês sobre os escritores da cidade de Paris no século XVIII. Esses relatórios - material empírico, documento primário – formado por pequenas biografias, informações sobre publicações e comentários pessoais sobre escritores investigados pela policia formam uma narrativa, contam uma história. Uma história construída a partir da visão de mundo de uma autoridade burocrática do Antigo Regime e inscrita numa estrutura de significados. Uma outra narrativa é construída por um outro autor – o historiador Robert Darnton – a partir da compilação das informações fornecidas pelo inspetor e que possibilitam o delineamento do perfil dos intelectuais do Alto Iluminismo. Esta narrativa é a identificação, análise e interpretação das estruturas de significação. Escolher códigos estabelecidos em uma determinada cultura e identificar de que forma estes são produzidos, lidos e interpretados pela mesma, qual a sua importância no contexto social e como os mesmos são transmitidos são os procedimentos da descrição densa (GEERTZ: 1989).
 
A classificação dos literatos seguindo as informações do policial em seus relatórios - local de nascimento, idade, ocupação social -, possibilitaram a Darnton, num primeiro momento, esboçar um perfil dos intelectuais no período do Alto Iluminismo. Mas não foram considerados por ele elementos suficientes para uma interpretação sobre o funcionamento do mundo literário e as regras do jogo na chamada República das Letras. Para além destes dados, digamos, estatísticos, os relatórios também contém pequenas histórias e comentários a respeito dos escritores do período. Se consideramos os relatórios como narrativa e o policial como um autor, não podemos esquecer que a mesma está imbuída de uma visão construída socialmente acerca dos escritores, sendo então necessário dar atenção ao discurso produzido pelo nosso policial acerca dos seus investigados.
 
O discurso é o ponto a ser discutido neste texto. Não o discurso do delegado de polícia Joseph d´Hémery, mas o discurso do historiador Robert Darnton. De que maneira o mesmo se apropria do seu material empírico de forma que sua interpretação seja coerente com sua proposta de trabalho explicitada na entrevista à revista Estudos Históricos: a importância da literatura na Revolução Francesa, o papel dos intelectuais, a difusão da palavra impressa e a opinião pública como uma força na criação de uma nova ordem democrática. E também como o mesmo utiliza os relatórios do delegado de policia para demonstrar que o que fomentou a Revolução Francesa foi a produção literária das gens sans état e não dos philosophes (DARNTON: 1987).
 
 
OS ARQUIVOS DE JOSEPH D´HÉMERY
 
 
Comecemos seguindo o caminho trilhado por Darnton. Um levantamento dos dados registrados a respeito dos escritores como o local de nascimento, data e ocupação social lhe possibilita fazer algumas conclusões. A partir da estrutura demográfica dos escritores incluídos nos relatórios, feitos entre os anos de 1748 e 1753, Darnton identifica um grupo relativamente jovem, “algo semelhante a uma geração literária” (DARNTON: 1986, 195). A maioria dos escritores era da própria Paris e a composição social demonstra que muitos puderam ser classificados dentro do critério sócio ocupacional, mas grande parte dos que não podiam ser identificados, pois não tinham ocupação profissional nem social definidas e dentro deste grupo não-identificável estavam a gens sans état.
 
Estas informações possibilitaram a construção de um determinado perfil da Republica das Letras, mas as histórias e anedotas registradas pelo delegado nos seus arquivos precisavam ser minuciosamente analisadas a fim de se entender a lógica de funcionamento desta Republica. E é este mundo que Darnton começa a destrinchar vendo os relatórios de d´Hémery como uma narrativa de um escritor iluminista em sua tentativa de ordenação do mundo social. Mas como ordenar um mundo, onde seu objeto principal – o escritor – não era visto ainda como uma categoria social ou uma profissão definida? E por que os mesmos precisavam tanto ser vigiados e controlados pela polícia? É apresentando os dados fornecidos pelo delegado de policia que o autor vai oferecendo aos seus leitores as informações necessárias para o conhecimento deste mundo. Ao mesmo tempo apresenta a lógica de trabalho do funcionário do Antigo Regime, quais os tipos de informações acerca dos investigados o mesmo considerava ser importantes e que precisavam ser registradas.
 
 
A própria função do delegado de polícia, a de inspecionar as publicações e conseqüentemente os escritores, já é bastante significativo para compreender o papel da literatura no processo intelectual e cultural que culminará na Revolução Francesa. Segundo Tocqueville, a França do Antigo Regime convivera com as tradições despótica e democrática simultaneamente. Ao definir as esferas pública - sob domínio do monarca absoluto, e privada - espaço do exercício da liberdade de consciência, o Antigo Regime deu vida às atividades produzidas nas academias de ciências, nas sociedades e salões literários. A liberdade de opinião estava restrita ao espaço privado e a figura do policial representa os limites da liberdade de opinião: a não invasão das mesmas no espaço público. Sem nenhuma participação na vida pública, as sociedades do Antigo Regime, vividas como uma experiência do livre pensar, estavam relacionadas à construção de idéias abstratas, sem nenhuma relação com a vida política.
 
 
O spirit de finese marca as formas de sociabilidade nos salões, clubes e academias literárias do Antigo Regime. Há uma valorização nas formas de comportamento, no modo de falar e de expressar o pensamento, um ideal de civilidade. O cultivo do bom gosto e da vida do espírito possibilitou uma nova forma de distinção e status social numa sociedade que não está aberta a todos. A participação na mesma pressupõe o estabelecimento de relações que possibilitam a inclusão/exclusão do mundo das letras funcionando dentro da lógica do prestígio, característica elementar do Antigo Regime.
 
 
Os arquivos do delegado revelam alguns pressupostos básicos sobre a vida literária no Antigo Regime. Sendo assim, as historias de proteção e privilégios adquiridos por determinados escritores não são de nenhuma forma consideradas desmoralizantes nos relatórios do delegado. Isto porque suas observações a respeito dos escritores protegidos, o status e privilégios adquiridos pelos mesmos fazem parte de um consenso comum, de uma lógica de funcionamento do mundo das letras reconhecida socialmente.
 
A lógica da proteção e do prestígio dentro das sociedades literárias acabou gerando uma massa de indivíduos sem função social definida na qual o delegado se refere como rapaz: indivíduos que não contavam com nenhuma proteção, vagavam de atividade em atividade, vinham geralmente do Terceiro Estado. Um termo que, segundo Darnton significava marginalidade e uma forma de classificar aqueles que não possuíam uma posição definida dentro da sociedade: os gens sans état. Darnton apresenta também os diferentes tratamentos e referências feitas pelo delegado de policia sobre seus investigados. As formas de tratamento e vocabulário utilizados pelo delegado permitem perceber que o mundo letrado não é uno e também definem quem representa ou não perigo para a sociedade. A partir deste ponto, o autor dá destaque aos relatórios onde se concentra o trabalho da polícia e quais são os escritores considerados perigosos e porque.
 
 
Voltemos então à questão da liberdade de opinião para entender o que era considerado perigoso para o delegado d´Hémery. O pensar livremente pressupõe uma forma de esclarecimento e a experiência de igualdade: os homens são iguais pelas idéias. Impedidos de participação na vida política, os homens de letras viam a restauração da paz e da harmonia na sociedade como produtos de uma reforma moral. Mas a crítica moral é uma forma indireta de participação política representando uma ultrapassagem do esclarecimento da esfera privada para a esfera pública.
 
Mas segundo Tocqueville, o pensamento destes homens, que não possuíam nenhuma experiência no campo da política ficava restrito ao campo que ele chamou de idéias abstratas. Estes homens apontavam os problemas e deficiências do Estado mas sugeriam apenas reformas e não mudanças. Acreditavam que estas deveriam ser implementadas por um príncipe esclarecido e iluminado pela razão, que garantisse as bases aristocráticas da sociedade já que os mesmos faziam parte da nova elite aristocrática e letrada que se formava na França. Sendo assim, estes homens que formulavam idéias abstratas aparecem nos relatórios do policial, mas seus comentários se restringem a análises pessoais sobre a forma de escrita e produção. Não representavam, portanto, nenhum tipo de perigo.
 
 
Os escritores considerados perigosos eram aqueles que publicavam panfletos e textos com criticas morais, os libelles. Textos que comprometiam a reputação, não de gente comum, mas de integrantes da aristocracia e do rei. Eram perigosos porque eram capazes de formar uma opinião pública crítica a respeito da aristocracia, denegrindo sua imagem. Esta era a percepção do inspetor do comercio livreiro: os panfletos desgastavam o respeito pelo regime e tornava a autoridade do rei cada dia mais vulnerável. A questão moral é ponto-chave no que diz respeito à revolução pois será através dela que os grupos excluídos e insatisfeitos irão demonstrar a decadência e corrupção do Antigo Regime. E para o delegado, a ameaça vinha das ruas.
 
Para Tocqueville, a revolução só foi possível porque as estruturas tradicionais do Antigo Regime já estavam abaladas. Os privilégios concedidos à nobreza de sangue haviam sido estendidos a outros grupos criando novas elites. A exclusão da maioria de grupos interessados em participar destas novas elites motivou as massas, pois os excluídos identificavam-se com a exclusão, os desiguais com a desigualdade. Segundo o autor francês o que motivou as massas foi o sentimento de paixão movido pelas ideias propagadas pelas elites literárias.
 
Identificados quais os tipos de produções literárias e quais os escritores considerados perigosos para o regime, surge a questão: porque Diderot é considerado “um rapaz inteligente mas extremamente perigoso”? Ele não escrevia libelles atacando a moral dos indivíduos ilustres da aristocracia nem do rei. Escrevia obras iluministas, trabalhando inclusive, na elaboração do seu Dicionário Enciclopédico. Seu perigo estava no que o delegado considerava sua irreligião e sua contribuição na disseminação do livre pensamento.
 
 
Mas de que forma irreligião e livre pensamento se tornam um perigo na concepção do delegado? A Revolução Cultural do século XVIII é o ponto final no processo de secularização iniciado no Renascimento. A filosofia iluminista rejeita o princípio da Revelação. Deus se revela nas suas obras: a natureza. A observação da mesma possibilita o desvendamento do mundo libertando o homem da superstição e das crendices. Há uma valorização da capacidade da razão humana, sua capacidade de pensar por si próprio. A opinião livre é um caminho para a libertação, pois há uma separação entre Verdade e Fé. Separando razão e religião, a moral começa a ser pensada independente da natureza religiosa. O mundo está por fazer-se e será feito através da ação humana no mesmo e para isso o conhecimento é um elemento útil. E o poder deve estar com aqueles que são capazes de pensar livremente e de agirem concretamente no mundo.
 
Por isso, o delegado não separava religião de política. Acreditava que a irreligião minava o poder da coroa a partir do momento em que questionava a autoridade do rei e de um Estado intimamente ligado à Igreja. Num mundo onde o escritor ainda não possuía uma posição profissional nem social definida, colocar libertins (livres pensadores) e libellistes (escritores de panfletos com críticas morais) num mesmo patamar de ameaça e perigo, significa dizer que os dois foram elementos contestadores da ordem, cada um à sua maneira. Ao mesmo tempo, incluir Diderot na lista dos “perigosos” é um elemento importante para entender que tipo de escritor merecia a vigilância constante da polícia. 
 
Darnton chama a atenção para o fato de Diderot ter sido chamado por d´Hémery de “rapaz”. Suas origens e sua história de vida serviram como uma referência para a atenção e vigilância do delegado. Um indivíduo sem definição específica na sociedade, um símbolo da desordem no meio de uma tentativa de ordenação de um mundo não só literário mas também social. E que também vivia acompanhado de outros escritores que estavam sempre produzindo textos contra a religião fazendo parte de uma corrente de libertins.
 
Para Darnton era do grupo da gens sans état que realmente provinha a verdadeira ameaça ao Antigo Regime. Seu argumento se fundamenta nos dados elaborados a partir dos relatórios que incluem as biografias e classificações feitas pelo delegado de policia. Com quem os escritores estabelecem relações, a origem social, ocupação profissional, local de moradia, os tipos de casamentos são informações importantes e não são destacadas no texto por acaso, pois servirão de elementos para Darnton apontar no final do artigo qual era o perfil do escritor considerado perigoso pela polícia e porque era considerado assim.
 
 
O fechamento do seu argumento de que o perigo e a verdadeira origem do movimento literário que irá culminar na Revolução Francesa está nos escalões inferiores da República das Letras se dá com a junção de seu “banco de dados” e as historias descritas pelo delegado, o que lhe permite elaborar um modelo padrão de escritor considerado uma ameaça. E termina com a transcrição dos relatórios sobre Diderot, Lambert e Montbron. Homens que como tantos outros foram incluídos nos arquivos da policia e que pertenciam ao que ele identifica como uma nova geração literária, homens excluídos do le monde e impulsionados pela paixão e não pelas ideias abstratas produzidas nas academias e salões literários. 
 
REFERÊNCIAS
 
DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
 
______________ Um inspetor de policia organiza seus arquivos: a anatomia da Republica das Letras. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

 
GEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, c.1989.
 
 
TOCQUEVILLE, Aléxis de. O antigo regime e a revolução.Brasília: Ed. Univ. de Brasília, c.1979.
 
Uma entrevista com Robert Darnton. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 4, 1989, p. 232-243.
 

A experiência histórica do movimento de independência das treze colônias americanas à luz do moderno conceito de Revolução

 
 
 
Segundo Hanna Arendt (ARENDT: 1971), apesar do aspecto social não estar presente na Revolução Americana, sua principal contribuição para a formação do conceito moderno de Revolução reside no fato de que sua importância não se restringe às transformações no estabelecimento de uma nova forma de governo, mas no estabelecimento de uma ideia de que a pobreza não é algo inerente ao homem. Foi na América que os seguidores das doutrinas calvinistas, fugitivos das perseguições religiosas na Europa, colocaram em prática as ideias de que a miséria e a pobreza eram situações que podiam ser revertidas através do trabalho, que a riqueza não era pecado mas sinal de salvação.
 
A colonização inglesa na América baseava-se, desde o princípio, pelo estabelecimento do autogoverno na maioria das colônias. A mudança na política colonial inglesa visando cobrir os custos da Guerra dos Sete Anos contra a França abriu um imenso debate político a respeito das relações entre colônia e metrópole: se a Inglaterra tinha direito ou não de aumentar os impostos sem a participação de representantes dos colonos no Parlamento. Um outro fator que gerou grandes discussões foi a nomeação pelo reino da Inglaterra de governadores para as colônias, ferindo a tradição do autogoverno.
 
O que os colonos ingleses desejavam no início não era um rompimento com a Grã-Bretanha, mas a restauração de direitos que achavam que estavam sendo usurpados e desrespeitados. Os colonos ingleses consideravam-se herdeiros de uma tradição política - uma monarquia constitucional que se baseava na existência de uma Constituição que limitava as ações do rei. Não viam o Parlamento como um agente responsável para tomar decisões a respeito das colônias, pois os colonos não possuíam representantes dentro da instituição que representava todos os súditos, que por sua vez, deviam se submeter a todas as suas decisões. Os debates a respeito dos direitos da Grã-Bretanha em interferir no governo e administração das terras americanas levaram a um intenso questionamento a respeito das suas instituições e suas relações com as colônias. A impossibilidade de chegar a um acordo favorável levou aos movimentos de independência e à ruptura definitiva com a metrópole.


Para Hanna Arendt, a característica do conceito moderno de Revolução que podemos encontrar na experiência americana é o fato de que esta revolução se iniciou como um movimento de restauração, os homens envolvidos nos movimentos acreditavam que estavam lutando pelo restabelecimento da antiga ordem, mas os acontecimentos subsequentes fizeram com que as expectativas iniciais fossem extrapoladas surgindo algo inteiramente novo, que não estava planejado. A independência das 13 colônias americanas foi uma experiência nova, nunca antes ocorrida na história, pois foi a primeira vez que uma colônia se declarava independente da sua metrópole.

 
O que a revolução americana trouxe de novo foram as concepções de igualdade e liberdade. Os homens são iguais por nascimento e se tornam diferentes em virtude da instituições sociais e políticas - diferentemente da concepção clássica de igualdade onde a mesma era concedida ao homem através da cidadania. Segundo Arendt, "o resultado da revolução não foi a 'vida, liberdade e propriedade' como tais, mas sim elas tornarem-se direitos inalienáveis do homem" (ARENDT: 1971, 31). A declaração de independência de 1776 diz: "Sustentamos como verdades evidentes que todos os homens nascem iguais, que estão dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais contam o direito à Vida, à Liberdade e à busca de Felicidade; que para assegurar estes direitos instituem governos..." (Declaração de Independência. 4 jul.1776).
 
 
A questão da liberdade na experiência americana diz respeito não apenas a um rompimento político, à libertação de uma opressão, mas à instauração de uma nova forma de governo que visava a constituição de um novo tipo de liberdade.  Se apenas tivesse ocorrido um rompimento político com o objetivo de garantir direitos, haveria somente libertação. Mas o fim último da revolução é a liberdade transformando-se num modelo político de vida. A liberdade, como um fenômeno político, é um produto do esforço humano que significa participação nas coisas públicas ou admissão ao mundo político.  Sendo assim, a instituição de uma nova forma de governo nas colônias agora independentes, revelou a capacidade humana de construir algo novo: a criação de um governo completamente diferente do que existia até então e que tem por finalidade última defender e garantir direitos inalienáveis do homem.
 

 
A concepção de liberdade como um direito do homem nascido com a revolução americana forneceu subsídios para a contestação da ordem colonial e ao apontamento sobre o excesso de mando e dominação das metrópoles europeias, acarretando a construção de projetos de autonomia política. Na Europa, a concepção de liberdade como direito do homem e do cidadão, portanto, a aliança entre cidadania e liberdade, colocaram em xeque o Estado absolutista e sua sociedade estamental levando ao estabelecimento de uma nova ordem social e política.


 
REFERÊNCIA
 
ARENDT, Hanna. Sobre a revolução. Lisboa: Morales Editores, 1971.

Documentário The Corporation (A Corporação)

O documentário The Corporation (A Corporação) é uma produção canadense produzida e dirigida por Mark Achbar, Jennifer Abbot e Joel Bakan em 2003. Mais de 40 entrevistas são apresentadas com diversos pontos de vistas de historiadores, executivos, críticos e ativistas como Michael Moore.
 
 
O que o documentário de maneira geral nos mostra é a forma como agem as corporações e o poder conquistado por estas ao longo do tempo. Suas formas de atuação visam somente a produtividade e consequentemente o lucro, não importando como e quais as formas de se alcançá-los. O que podemos ver é o poder do grande capital que “engole” as pequenas empresas e se estende pelo mundo.
 
As estratégias de marketing utilizadas pelas mesmas fazem com que seus produtos façam parte da nossa vida, influenciando nossas formas de consumo e até servindo como elementos de distinção dentro da sociedade, pois determinados produtos tornaram-se símbolos de status e poder. O encantamento provocado por esta “máquina” não permite que o consumidor pense, analise ou até mesmo perceba o que está por trás do funcionamento dessas corporações. Aliás, o objetivo é este mesmo: o papel do consumidor é consumir, gerar lucro e não pensar sobre o que está consumindo.
 
Neste sentido, o documentário é um alerta sobre a falta de ética das grandes corporações, das suas influências no jogo político mundial e sua atuação ambígua, como no caso de empresas que mantém programas sociais ou ecológicos, mas ao mesmo tempo utilizam mão de obra quase escrava ou infantil na fabricação de seus produtos – principalmente nos países chamados subdesenvolvidos - e produzem materiais ou resíduos prejudiciais ao meio ambiente.

 
O documentário é um instrumento de reflexão sobre a sociedade atual. Tudo o que a mesma está produzindo e quais são os custos social, ambiental e econômico deste tipo de atitude e qual é a herança que o mundo de hoje está deixando para as gerações futuras.
 
 
 Clique na imagem para ver o vídeo.



 
 
 



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Guest post: "Um triturador de sonhos: o ensino da rede pública de Sergio Cabral e Eduardo Paes"


Crédito da foto: Wagner Pinheiro

O depoimento transcrito abaixo é do professor Daniel Klimroth Soares e publicado no grupo de Professores do Município do Rio de Janeiro. Agradeço ao professor Daniel a oportunidade de reproduzi-lo aqui no blog.
 



Um triturador de sonhos: o ensino da rede pública de Sergio Cabral e Eduardo Paes
 Daniel Klimroth Soares



Acho que esse será o desabafo mais visceral que escrevi até agora nas minhas redes sociais. Peço desculpas aos companheiros pelo tamanho do desabafo.

Ninguém faz ideia do que os profissionais passam dentro do sistema público de educação do Rio de Janeiro. Quando você encerra sua fase de estudos no Ensino Superior, você sai da faculdade cheio de sonhos e ideais. É o ímpeto de todo jovem que deseja modificar o seu país , e como a maioria que consegue enxergar a sociedade como um todo provavelmente teve a ajuda de um professor para enxergar o mundo desse modo, mais do que normal ele desejar seguir a trajetória daquele mestre que ajudou a formar a sua consciência. Entretanto, em algum momento alguém vai te avisar: "olha, você quer mesmo entrar para o magistério? Pagam muito pouco." Ainda assim você não vai se importar, afinal, para você educação não é só uma fonte de renda - e não é mesmo - é a realização de uma vocação. Mas a realidade da educação pública da "capital cultural do país" é um triturador de sonhos.

Quando se inicia, geralmente em qualquer rede pública, te enviam para as áreas com os problemas mais graves. Você acredita que isso é um sinal de que precisam da sua vontade e da sua inspiração onde tudo caminha mal - na verdade apenas estão renovando os professores que estão esgotados, de licença médica e desesperados.

Então você vai descobrir que aquelas propagandas eleitorais que dizem que tudo melhorou é, como em outros casos, mentiras vendidas para o público que não frequenta a escola, ou que - sugado pelo mercado de trabalho - deseja apenas um lugar para deixar o seu filho ocupado enquanto se esgota de trabalhar. Para essas pessoas, a maior preocupação é de consumir aquilo que há poucos anos era impensado consumir, se matam aguardando o salário que vão ganhar para comprar parafernálias produzidas por outras pessoas - que do outro lado do mundo- ganham menos do que elas. Para isso é importante que os filhos fiquem com alguém, não estão preocupados em colaborar na formação de seus filhos para a cidadania, aprenderam que cuidar bem do filho é comprar o que ele quer.


Há também aqueles que são cínicos. Como o seu poder aquisitivo pode pagar uma escola particular para os seus filhos, acham que o sistema público precisa apenas ser um modelo preventivo do sistema prisional, onde a educação integral vai impedir que aqueles sujeitos "perigosos" para a sociedade permaneçam vigiados e sobre controle. Em sua concepção de mundo como quem usa o sistema público é pobre, e estes são "limitados", basta então que aprendam a ler e escrever. Afinal, desse modo vão fazer parte do exército de reserva que mantém o salário dos demais trabalhadores em baixa, ou, simplesmente vão compor o grupo que se submete aos subempregos.

A rotina de professor então será um duro choque de realidade. Vai descobrir que não importa o quanto você se esforce para ensinar aqueles crianças, o quanto deseja que nelas seja desperto o espírito crítico, ou a consciência para o mundo em que vivem, infelizmente para uma grande parcela o resultado positivo não virá. Como poderia ser diferente? Em suas casas muitas dessas crianças apenas aprendem a não perturbar, quando tiverem dúvidas do tipo, por exemplo, qual a razão do céu ser azul. Que fiquem quietas pois seus pais estão tentando relaxar após trabalharem duro para comprar alguma parafernália nova e divertida. "Quer saber algo? Vai no google, não dei um duro danado para comprar aquele computador e você não usar."

Na escola, diversas vão trazer de casa aquele desestimulo a curiosidade. Vão considerar, então, que a escola é o lugar para brincar e conversar - não é que também não seja, mas para elas é somente isso - já que não podem ficar muito na rua, pois nunca se sabe quando vai ocorrer um tiroteio. Se até na escola as "tias" se jogam embaixo de suas mesas de trabalho para se protegerem, o que dirá nas ruas. Essas crianças vão entrar em sala com mais 40 colegas e, muito provavelmente, metade deles passam pela mesma rotina em casa. Você, professor novato, vai então descobrir com o passar do tempo que sua voz não consegue superar a de 30 alunos gritando e falando alto. Vai tentar então utilizar novos equipamentos e tudo vai faltar. A internet não funciona, o projetor quebrou, só tem um sala preparada para equipamentos multimídia, quando chove há goteiras, no calor escaldante não tem ar condicionado e nem água. Em meio a tanto descaso você vai ver um protesto inconsciente se manifestar entre seus alunos e não vai compreender: seu aluno vai pichar uma parede, o outro vai quebrar a cadeira, outro que apanha do pai vai descontar sua revolta no colega.

Você não vai compreender porque todos aqueles métodos fantásticos não funcionam naquele comunidade - claro, você vem de outra realidade e tem dificuldade de enxergar o mundo daquelas crianças. Você exausto de tentar, durante 20 minutos, com que aqueles alunos desinteressados, desestimulados - ou estimulados por outras referências e valores - o ouçam, vai se irritar. De repente, um desentendimento com o aluno mais incontrolável da turma. Você pede para fazer silêncio e ele se recusa, o coloca para fora, mas, ele também se recusa, então duas pessoas vivendo em dois mundos diferentes se tornam definitivamente hostis. Você não entende porque ele é incapaz de compreender a importância do que você o quer ensinar e ele é incapaz de compreender porque você não enxerga que no mundo dele nada daquilo tem valor. Pior, como ele não consegue aprender - por ter sofrido de vários problemas ao longo do caminho - sem notar, vai impedir que os outros sigam em frente, já que ele não consegue sair do lugar.

Para indicar todos os problemas, você passa a defender que é o seu dever sinalizar os problemas de aprendizado com o recurso que tem em mãos: as avaliações e notas. Ao término de um processo lento e continuo de aulas que se repetem e diversos modelos diferentes de avaliação que se frustram, você estabelece notas baixas a inúmeros alunos, se culpa, perde noites pensando no que errou, mas no final mantém suas notas. Para sua surpresa descobre, no conselho de classe, que aqueles mesmos alunos com baixo desempenho tiveram notas, em outras disciplinas, melhores que as suas, sendo exceções um ou outro professor que estabeleceram valores de avaliação parecidos com os seus. Logo depois, é informado que a direção está sofrendo inúmeras pressões, da Secretaria de Educação, pelos valores baixos das avaliações e é pressionado para rever suas notas. Novamente se sente culpado e, também, é responsabilizado por todos os problemas de aprendizagem de suas turmas.
 
 
 
Novamente rever seus métodos, faz malabarismo, desenvolve danças, cria maquetes, modifica o sistema de avaliação e nada causa grande impacto no interesse do corpo discente. Passa então a distribuir pontos até pela presença do aluno em sala de aula. É pontuação para o aluno que chegar no horário; por não gritar durante a aula; se não cuspir no chão; se souber escrever o nome, enfim, sua avaliação se torna mais subjetiva e relacionada ao grau de inconvenientes que um aluno lhe causa.

Frustrado por considerar seu trabalho pouco influente na vida daquelas crianças que você tanto deseja colaborar, passa então a se preservar. Evita aumentar o tom de voz, ignora se te ignoram quando tenta construir uma aula dialógica, desconsidera se a turma não retém atenção no que você tentar explicar, ou se despede da turma sem cobrar pela atividade que você procurou estimular para que fizessem. No dia seguinte, acorda cedo e se arrasta para voltar para a escola. Constrói subterfúgios para tanta frustração, se foca em pegar mais turmas, em aumentar a renda que é baixa, organizar as suas finanças para viagens e atividades recreativas, tudo aquilo que possa ajudá-lo na rotina desagradável. Contudo, com mais turmas, aumenta o aborrecimento, as hostilidades, os desentendimentos e as frustrações.
 
Após alguns anos, reencontra uma esperança, um sinal de transformação. É informado que grande parte da categoria pensa como você e que se mobiliza para fazer uma greve, greve não só por valorização e sim por melhorias de trabalho. Suspende então as atividades, participa de manifestações e crê cegamente que a sociedade vai reconhecer sua luta como legítima ao ver a grande mobilização na televisão. Nova frustração: a grande imprensa ganha dinheiro com projetos pagos pelo o seu patrão, o prefeito da cidade, e editam as imagens, falam que o movimento é pequeno e que há crianças sofrendo com a sua greve. Você não dorme mais, é ameaçado o tempo todo com notícias de corte de ponto, reposição de aulas aos sábados e até com demissão daquele cargo que você tanto se esforçou para conquistar em processo seletivo concorrido.

Nova esperança: a sua greve vai parar na justiça. Agora você acredita que um juiz, preparado para julgar as causas com imparcialidade e senso de justiça, vai reconhecer a legitimidade de tudo aquilo que você acredita. Outra desilusão: a justiça considera sua greve ilegítima. Uma onda de desinformação, boatos e enganos ocupa sua rotina, tudo é incerto. Novos julgamentos e algumas garantias. Novamente é a esperança que passa a lhe sustentar entre tantos medos. O governo - que um dia você acreditou ser algo responsável por zelar da melhor forma pelo interesse público - lhe faz promessas, até mesmo de um plano de carreira que há 20 anos a sua categoria luta para conquistar e ter sua vida dedicada a educação reconhecida.

A partir de então não é a sua crença no sistema público de educação que passa a ser triturado. O poder executivo envia um plano de carreira que é um ultraje para a sua profissão, praticamente um ato de vingança contra o seu protesto. O legislativo comprado pelo executivo trai a sua confiança e passa, na surdina, a conspirar contra as suas aspirações. O judiciário comprometido apenas com a visão de mundo de uma elite e dos senhores do poder se torna insensível as demandas que você e outros milhares, tanto lutam. Na sociedade, indiferente aos seus atos e manipulada, não encontra apoio suficiente. A imprensa que você considerava responsável por informar e colaborar na vigilância das instituições públicas passa a editar imagens, distorcer fatos e publicar mentiras, dando espaço apenas para as "fontes oficiais", mantendo a fala da sua categoria muda e seus atos invisíveis.

Agora não é mais os sistema educacional a sua fonte de indignação e descrença. Você passa a desacreditar na democracia, no sistema republicano, nas instituições públicas, nos poderes constitucionais, na imprensa e por fim, na sociedade.

Se apesar disso tudo você ainda quiser ser professor da Rede Pública do Rio de Janeiro, não vou dizer para você que o seu salário será baixo e indigno. Vou apenas dizer que se você estiver disposto a pôr todas as suas esperanças na sociedade em prova, então siga em frente. Tenha, contudo, em mente que isso não será apenas um ato de coragem, mas, igualmente de loucura. Tal como aquele apostador que coloca sua vida nas mãos do destino, quando encosta o cano frio de uma arma na cabeça e brinca de roleta russa.

 
 

A greve dos profissionais de educação do Município do Rio de Janeiro: causas e efeitos

 
Passeata dos profissionais da Educação do Município do Rio de Janeiro
 
 
 
A greve dos profissionais municipais da educação da cidade do Rio de Janeiro iniciada no dia 08 de agosto de 2013, parece estar chegando ao fim. O magistério municipal não vivia uma greve há 19 anos. Ela é reflexo da insatisfação com a política educacional dos últimos governos - do ex-prefeito Cesar Maia e do atual Eduardo Paes - que tem como marca o sucateamento e privatização das escolas e a desvalorização do profissional da educação.
 
Muito já foi escrito sobre esta greve e seus motivos, o que desejam/esperam os profissionais da educação que participaram dela. Por este motivo, neste post irei apenas indicar textos e leituras que ajudam a entender o que os professores contestam no  projeto educacional implementado pelo governo Eduardo Paes e sua secretária de Educação Claudia Costin e o que acontece/aconteceu durante este movimento a partir do olhar de quem se envolveu diretamente nele: os professores.
 
 
Assembleia da rede municipal de educação - Clube Municipal
 
 
 
Uma coisa é certa: independente dos rumos que irá tomar este movimento, NADA SERÁ COMO ANTES, pois como postou no Facebook a Andressa Lacerda, professora que tive o prazer de conhecer durante nossa luta,
 
"Só quem fez greve pode entender o que estou falando.
Só quem respirou o gás de efeito imoral
Só quem recebeu telegrama

Só quem teve a ameaça de corte de ponto
Só quem acompanhou a ocupação na Câmara
Só quem ficou debaixo de sol com aquela camisa preta e viu a Rede Globo ser expulsa da prefeitura
Só quem voltou pra escola encarou os "colegas"
Só quem conhece as musiquinhas
Só quem abriu mão de momentos com a família para militar
Entenderá o que representou essa greve."
 
 
Foto: Wagner Pinheiro
 
 
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Educação pública, lógica privada - Cátia Guimarães
 

 
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Relato de uma professora sobre a greve da educação no Rio de Janeiro - Larissa Costard
 
 
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Ato unificado dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro
 



 
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os antropófagos: as representações da Aliança Liberal nas charges de O Malho

Este artigo, produzido a partir da pesquisa de imagens de índios em O Malho, foi publicado na Revista eletrônica História e-História. Na ocasião, eu não tinha conseguido a reprodução das imagens para inserir no artigo. Agora, com as imagens disponíveis, reproduzo o texto aqui.
Ele também  pode ser acessado no endereço
 
 
OS ANTROPÓFAGOS: AS REPRESENTAÇÕES DA ALIANÇA LIBERAL NAS CHARGES DE O MALHO
 
 
 
Uma das práticas indígenas que causaram mais espanto e horror aos europeus durante a conquista do continente americano foi, sem dúvida, a antropofagia. A prática antropofágica foi um elemento que permitiu aos conquistadores a classificação dos grupos indígenas entre inseridos ao processo colonizador - os Tupi – e os que não aceitavam a subordinação - os Tapuia (MONTEIRO, 2001).
 
Num primeiro momento, os índios foram identificados ambiguamente, representando-se simultaneamente como canibais, isto é, aqueles que tem a carne humana como integrante da sua dieta alimentar, ou então como habitantes de um paraíso terrestre. Entretanto, o olhar atento e mediado por interesses dos cronistas e viajantes da época estabeleceu diferenças entre os grupos. Neste contexto, os canibais são localizados geograficamente e sua prática os coloca em uma classificação de barbárie e selvageria como descreve Thévet:
 
Os canibais, cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Maranhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos, não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se não até com maior satisfação (THÉVET, 1978).
 
Em situação diferente se encontram os Tupis, na qual a ingestão de carne humana fazia parte de um ritual guerreiro, onde os inimigos capturados são comidos por vingança: "fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio" (STADEN, 1974). Esta percepção dos cronistas estava correta: era através da guerra e do ritual antropofágico que os Tupis estabeleciam as relações intertribais e no seio do próprio grupo. A relação com o outro é um elemento da cultura tupinambá que se expressa através da guerra e do ritual antropofágico (ALMEIDA, 2003).
 
Mas a resistência de determinados grupos ao processo colonizador fez com que categorias fossem criadas visando a identificação de aliados e dos inimigos. A antropofagia se vulgarizou e se transformou em um símbolo de identificação dos povos nativos do Brasil já no período colonial. Nesse sentido, mais do que prática nativa, a antropofagia persistiu ao longo do tempo como símbolo de barbárie e selvageria, contribuindo para a elaboração de uma condição primitiva dos nativos brasileiros.
 
É dentro dessa chave que devemos interpretar o uso da antropofagia nas charges apresentadas por "O Malho". Ela aparece como mecanismo de reflexão sobre a disputa pela presidência da República do Brasil, qualificando os grupos políticos, daí a relação estabelecida entre a prática indígena e o partido da Aliança Liberal, como esse artigo sugere.
 
A campanha presidencial de 1929 é reflexo da quebra do pacto oligárquico que vigorou no Brasil durante todo o período da chamada Primeira República. Conhecido como "Política dos Governadores" ou "Política dos Estados", este pacto pode ser caracterizado como um instrumento de estabelecimento de uma ordem política após as tensões e conflitos que marcaram os primeiros anos do novo regime republicano instaurado em 1889.
 
A fórmula criada pelo presidente Campos Sales (1898-1902) traçava os princípios da nova política republicana: o governo federal esvaziado politicamente e voltado para a esfera administrativa deixando para os Estados o exercício das disputas políticas. A relação com os Estados foi marcada pela hierarquização da importância dos mesmos no conjunto da federação. E coube aos Estados maiores e mais importantes a geração de atores políticos e a condução da Republica, fazendo com que a competitividade na ocupação de cargos na esfera federal fosse baixa e garantindo a maioria na bancada aliada ao governo (LESSA, 1988).
 
Sob esta equação política se formava os "dois cenários da República" como propõe Margarida de Souza Neves: o dos estados da federação, espaço das disputas políticas entre as oligarquias regionais, da predominância das relações pessoais e da política de favor que os colocará em consonância com o governo federal. E o cenário da Capital, espaço do ordenamento dos arranjos políticos que configurava as hierarquias entre os estados da federação, garantindo assim a governabilidade e a condução da República.
 
Esse era o segredo da ordem, que, cada vez mais, era apresentada como pré-condição do progresso, subordinando assim ao primeiro o segundo dos dois termos da divisa positivista que a República brasileira bordara em pé de igualdade, em letras de ouro, no centro da bandeira nacional (NEVES, 2003:40).
 
Esta hierarquia política foi traduzida até 1930, através de uma sucessão de paulistas e mineiros na presidência da República, representantes das oligarquias mais poderosas do período. De um lado a oligarquia paulista, tendo seu poder e riqueza baseada nos cafezais e na incipiente indústria. De outro a oligarquia mineira, com seu prestígio alicerçado no maior contingente eleitoral do país.
 
A disputa pela presidência da República no ano de 1929, onde o governo federal, em desacordo com o tradicional pacto oligárquico, lançou a candidatura do paulista Julio Prestes, teve como resposta imediata a formação de uma coligação oposicionista – a Aliança Liberal - que lançou a candidatura de Getulio Vargas. A disputa entre candidato do governo e candidato da oposição representou a transferência das disputas políticas para o cenário da Capital Federal, gerando um clima de instabilidade política e desordem.
 
Esta competitividade não passará despercebida aos periódicos publicados na capital da República onde será tema de artigos, editoriais e charges. Entre estes periódicos está O Malho, criado em 1902 e com circulação até 1954, que possuía um perfil de crítica política bastante significativo.
 
É importante destacar o papel de O Malho no conjunto das Revistas Ilustradas produzidas no início do século XX. As inovações tecnológicas foram fundamentais para o fortalecimento das Revistas Ilustradas como um veículo de comunicação que atingiram um número cada vez maior de leitores. Agindo como formadores de opinião, estes veículos utilizavam as charges como instrumento de construção e de disseminação de referências sociais.
 
Utilizadas deste o período monárquico, as charges ganharam progressivamente um maior espaço nos jornais e nas revistas. Através das charges assinadas por caricaturistas que se consolidaram como intérpretes sociais que fizeram parte do seu quadro, O Malho retratou os conflitos e divergências políticas da época.
 
 

Dele pode-se dizer que foi a única revista de caricaturas a reproduzir na República os grandes tempos de suas congêneres do Segundo Reinado, nada poupando aos adversários, como no caso da Campanha Civilista, combatendo Rui Barbosa, e na Revolução de 30, ridicularizando os candidatos da Aliança Liberal (LIMA, 1963: 146).
 
 
A utilização de imagens de índios em O Malho era corrente, seja através de desenhos, propagandas ou fotografias. No caso das charges, imagens de índios ou de práticas indígenas foram utilizadas a fim de classificar ações políticas. Como no caso da campanha presidencial em 1929 onde, através das imagens aqui trabalhadas, a revista contribuiu tanto para a construção de determinadas representações – sobre a Aliança Liberal – quanto para a manutenção e reafirmação de outras – sobre os índios e as práticas antropofágicas.
 
Comecemos pela charge publicada na capa da revista no dia 17 de Agosto de 1929, intitulada OS ANTROPOPHAGOS. Um grupo de homens fantasiado de índios está reunido em volta de uma fogueira. A mesma é alimentada pelo "DESPEITO" e um homem identificado como "LIBERAL" está sendo assado. No canto esquerdo do quadro, o candidato do governo à Presidência da República JULIO PRESTES ri da situação e emite sua opinião a respeito do acontecimento: "Alli assa liberal...".
 
 
 
O Malho, 17/08/1929. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
 
 
Além de cumprir sua função, que é fazer rir, a charge "traz também em sua substância motivos para reflexões nem sempre superficiais (LIMA, 1963:26). Em primeiro lugar, devemos estabelecer uma relação entre a imagem e legenda. O texto guia o leitor para uma interpretação da imagem fazendo que o receptor leia e receba determinados significados e abandone outros. O texto tem um papel de elucidação seletiva, pois direciona a interpretação da imagem para uma determinada mensagem.
 
 
[...] o texto é o direito de olhar do criador (e logo, da sociedade) sobre a imagem: a ancoragem é um controlo, ela detém uma responsabilidade, face ao poder projetivo das figuras, sobre o uso da mensagem; em relação à liberdade dos significados da imagem, o texto tem valor repressivo, e compreende-se que seja ao seu nível que se investem, sobretudo a moral e a ideologia de uma sociedade (BARTHES, 1984:35).
 
Partindo deste pressuposto, podemos dizer que o jogo de palavras utilizado pelo cartunista na legenda encaminha o entendimento da mensagem para uma direção, que é fazer com que o leitor através da imagem associada à antropofagia - a fogueira, o homem sendo assado e cercado por um grupo de índios guerreiros - identifique o DESPEITO como o sentimento que inflama e conduz as ações dos integrantes do partido oposicionista (Alli assa liberal) ao mesmo tempo em que coloca este sentimento como uma característica moral do partido (Aliança Liberal).
 
A campanha da Aliança Liberal foi ridicularizada incessantemente pela revista e as ações conjuntas ou individuais dos integrantes do partido não escaparam de julgamentos morais e políticos, servindo de subsídio para a construção e divulgação de uma imagem negativa do mesmo. A charge OS AMIGALHÕES!, publicada em 05 de Outubro de 1929, também nos permite fazer uma análise sobre este ponto. Podemos ver no canto esquerdo da cena, uma índia velha, vestindo apenas uma tanga e colares de ossos e que está amarrada a um tronco que traz a inscrição: ALLIANÇA LIBERAL. A mesma está cravada de flechas. Cada flecha traz uma referência, transcrita abaixo na ordem de cima para baixo:
 
Carta de 10 de Maio – - Getúlio
Entrevista A Noite –- Borges
Carta pedindo a intervenção do presidente da República na escolha do seu sucessor -– Antonio Carlos
Ameaças de Revolução –  Neves da Fontoura
A Alliança Liberal não tem princípios –  A. Bernardes
Discursos desastrados do Leader Liberal –  Zé Bonifácio
Reprovação ao Manifesto liberal  – Assis Brasil
Carta a Epitácio implorando um acordo –  Mello Franco.
 
 
Do outro lado da cena, um grupo de integrantes da Aliança Liberal, entre eles Getúlio Vargas e Antonio Carlos, estão fantasiados de índios. Cada personagem segura um arco e estão numa posição que indica que acabaram de lançar as flechas. No canto do quadro, Zé Povo assiste a cena e comenta sobre ela: "Como eu estava enganado... Eu supunha que todos esses antropophagos fossem contra o Julio Prestes".
 
 
 
O Malho, 05/10/1929. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
 
 
É através do humor que a charge exerce o papel de crítica política, agindo como "porta voz da sociedade, interpretando a notícia, expressando um ponto de vista, transformando o fato numa consciência sobre ele (TEIXEIRA, 2005:75). Neste sentido, podemos ver que o movimento contrário à candidatura de Júlio Prestes foi relacionado pela revista ao despeito e a interesses privados. A atitude do governador mineiro em não aceitar a indicação feita pelo então presidente Washington Luís, que, conforme a tradição da política dos governadores garantiria a vitória do paulista à presidência da República, foi entendida como antipatriótica. Ambições políticas e pessoais teriam sido colocadas acima do interesse público. Assim como o mineiro Antonio Carlos, os integrantes do partido viam na oposição uma possibilidade de uma participação política que até então lhes havia sido negada.
 
A Aliança Liberal, na concepção da charge, não era um Partido no sentido stricto senso, mas uma reunião de indivíduos sem caráter moral, que agiam de forma independente e a serviço de ambições pessoais. Sendo assim, nada mais coerente com esta concepção do que as atitudes apontadas na charge como, por exemplo, a citação da carta enviada à Washington Luis por Getúlio Vargas, onde o gaúcho garantia o seu apoio e o do Partido Republicano Rio-Grandense ao então presidente. A adesão do partido gaúcho à oposição foi a quebra de um princípio elementar nas relações políticas e pessoais: o cumprimento da palavra.
 
Divisões dentro do próprio partido fizeram com que seus integrantes buscassem apoio para candidaturas estaduais na oposição. Grupos que viam a impossibilidade de vitória da Aliança Liberal, devido às fraudes eleitorais características do período, defendiam a luta armada em nome do partido, mesmo existindo dentro dele opiniões contrárias a esta posição. Integrantes do partido davam declarações contrárias às propostas partidárias. Essas ações, ao contrário do que se pretendia e como afirmam as palavras do Zé, apenas fortalecia a candidatura de Júlio Prestes e provocava um clima de disputa de egos entre os próprios aliados.
 
É preciso considerar que a leitura da charge não é anárquica. A construção e leitura da imagem se fazem através de um compartilhamento de saberes entre artista e leitor, isto é, seus símbolos e signos são possíveis de construção e de interpretação por fazerem parte de um mesmo código cultural. A partir deste pressuposto, podemos pensar na apropriação da imagem de índios nas duas charges para fazer referência a uma determinada situação política. Este recurso dos cartunistas nos permite fazer algumas conjecturas a respeito da visão sobre os indígenas e suas práticas culturais na sociedade brasileira na Primeira República.
 
É importante perceber que os personagens das charges não são indígenas e sim, políticos da Aliança Liberal vestidos de índios. Na verdade, a representação de índios e a pratica antropofágica são elementos utilizados a fim de descrever e dar função pejorativa às disputas e conflitos internos do partido. O que vemos nestas charges é a produção de personagens fictícios, mas que possuem uma identidade comum com sujeitos reais.
 
A leitura e reconhecimento desta identidade comum se fazem através de um código cultural e de um consenso partilhado a respeito deste sujeito.
 
 

[...] a charge produz a identidade do sujeito através de uma relação entre ele e um personagem diferente dele, para identificá-los entre si, e assim, ressaltar sua identidade recíproca (TEIXEIRA, 2005: 75).
 
Sendo assim, as charges não apresentam índios verdadeiros, pois não é sobre eles que as mesmas pretendem falar. Os políticos integrantes da Aliança Liberal são apresentados como índios porque o imaginário a respeito das populações indígenas, associado à barbárie e à incivilidade, permite estabelecer uma chave de interpretação para o leitor da mensagem que o cartunista pretende passar.
 
A antropofagia é utilizada para descrever e se referir a uma situação onde, para os chargistas da revista, os políticos da Aliança Liberal perderam todas as noções básicas de "civilidade" e atacam uns aos outros. Quando o Zé Povo diz que achava que os antropófagos Liberais eram contra o Júlio Prestes, seu inimigo político, ele faz uma referência aos rituais antropofágicos praticados pelos indígenas brasileiros, onde os inimigos capturados nas guerras intertribais eram sacrificados e comidos. Mas no caso da Aliança Liberal, a antropofagia se tornou uma guerra que extrapolou todas as regras e procedimentos tradicionais, pois ao contrário da tradição Tupi, onde somente os inimigos eram atacados e sacrificados, os liberais estavam atacando e "devorando" os membros da própria "tribo".
 
Desta forma, as ideias e conceitos a respeito das práticas indígenas, como a antropofagia, são vistas e utilizadas como uma representação da desordem. As disputas internas e conflitos de interesses dentro da Aliança Liberal são vistos como atos de barbárie e incivilidade. Mesmo que esta representação não seja verdadeira, pois se deve levar em consideração a especificidade dos rituais antropofágicos, é possível perceber uma determinada visão a respeito destes mesmos rituais e dos índios pela sociedade brasileira.
 
Essas percepções servem para qualificar determinados atos e atitudes como no caso da Aliança Liberal. Os dois termos – canibalismo e antropofagia – são utilizados para expressar a mesma situação. Antropofagia como ritual guerreiro e canibalismo como expressão da barbárie. Apesar de serem distintos, os termos se confundem e expressam uma só ideia: selvageria, traição, barbárie e incivilidade.
 
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
 
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984.
 
LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, 1988.
 
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Volume I. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1963.
 
MONTEIRO, John Manuel. Tupi, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas: UNICAMP, 2001.
 
NEVES, Margarida de Souza. "Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX." In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
 
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1557). São Paulo, Ed. Itatiaia e EDUSP, 1974.
 
TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005.
________________________"O traço como texto: a história da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930". Cadernos Avulsos. Rio de Janeiro: FCRB, nº 38, 2001.
 
THÉVET, André. As singularidades da França Antártica.(1558). São Paulo, Ed.Itatiaia e EDUSP, 1978.