quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os antropófagos: as representações da Aliança Liberal nas charges de O Malho

Este artigo, produzido a partir da pesquisa de imagens de índios em O Malho, foi publicado na Revista eletrônica História e-História. Na ocasião, eu não tinha conseguido a reprodução das imagens para inserir no artigo. Agora, com as imagens disponíveis, reproduzo o texto aqui.
Ele também  pode ser acessado no endereço
 
 
OS ANTROPÓFAGOS: AS REPRESENTAÇÕES DA ALIANÇA LIBERAL NAS CHARGES DE O MALHO
 
 
 
Uma das práticas indígenas que causaram mais espanto e horror aos europeus durante a conquista do continente americano foi, sem dúvida, a antropofagia. A prática antropofágica foi um elemento que permitiu aos conquistadores a classificação dos grupos indígenas entre inseridos ao processo colonizador - os Tupi – e os que não aceitavam a subordinação - os Tapuia (MONTEIRO, 2001).
 
Num primeiro momento, os índios foram identificados ambiguamente, representando-se simultaneamente como canibais, isto é, aqueles que tem a carne humana como integrante da sua dieta alimentar, ou então como habitantes de um paraíso terrestre. Entretanto, o olhar atento e mediado por interesses dos cronistas e viajantes da época estabeleceu diferenças entre os grupos. Neste contexto, os canibais são localizados geograficamente e sua prática os coloca em uma classificação de barbárie e selvageria como descreve Thévet:
 
Os canibais, cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Maranhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos, não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se não até com maior satisfação (THÉVET, 1978).
 
Em situação diferente se encontram os Tupis, na qual a ingestão de carne humana fazia parte de um ritual guerreiro, onde os inimigos capturados são comidos por vingança: "fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio" (STADEN, 1974). Esta percepção dos cronistas estava correta: era através da guerra e do ritual antropofágico que os Tupis estabeleciam as relações intertribais e no seio do próprio grupo. A relação com o outro é um elemento da cultura tupinambá que se expressa através da guerra e do ritual antropofágico (ALMEIDA, 2003).
 
Mas a resistência de determinados grupos ao processo colonizador fez com que categorias fossem criadas visando a identificação de aliados e dos inimigos. A antropofagia se vulgarizou e se transformou em um símbolo de identificação dos povos nativos do Brasil já no período colonial. Nesse sentido, mais do que prática nativa, a antropofagia persistiu ao longo do tempo como símbolo de barbárie e selvageria, contribuindo para a elaboração de uma condição primitiva dos nativos brasileiros.
 
É dentro dessa chave que devemos interpretar o uso da antropofagia nas charges apresentadas por "O Malho". Ela aparece como mecanismo de reflexão sobre a disputa pela presidência da República do Brasil, qualificando os grupos políticos, daí a relação estabelecida entre a prática indígena e o partido da Aliança Liberal, como esse artigo sugere.
 
A campanha presidencial de 1929 é reflexo da quebra do pacto oligárquico que vigorou no Brasil durante todo o período da chamada Primeira República. Conhecido como "Política dos Governadores" ou "Política dos Estados", este pacto pode ser caracterizado como um instrumento de estabelecimento de uma ordem política após as tensões e conflitos que marcaram os primeiros anos do novo regime republicano instaurado em 1889.
 
A fórmula criada pelo presidente Campos Sales (1898-1902) traçava os princípios da nova política republicana: o governo federal esvaziado politicamente e voltado para a esfera administrativa deixando para os Estados o exercício das disputas políticas. A relação com os Estados foi marcada pela hierarquização da importância dos mesmos no conjunto da federação. E coube aos Estados maiores e mais importantes a geração de atores políticos e a condução da Republica, fazendo com que a competitividade na ocupação de cargos na esfera federal fosse baixa e garantindo a maioria na bancada aliada ao governo (LESSA, 1988).
 
Sob esta equação política se formava os "dois cenários da República" como propõe Margarida de Souza Neves: o dos estados da federação, espaço das disputas políticas entre as oligarquias regionais, da predominância das relações pessoais e da política de favor que os colocará em consonância com o governo federal. E o cenário da Capital, espaço do ordenamento dos arranjos políticos que configurava as hierarquias entre os estados da federação, garantindo assim a governabilidade e a condução da República.
 
Esse era o segredo da ordem, que, cada vez mais, era apresentada como pré-condição do progresso, subordinando assim ao primeiro o segundo dos dois termos da divisa positivista que a República brasileira bordara em pé de igualdade, em letras de ouro, no centro da bandeira nacional (NEVES, 2003:40).
 
Esta hierarquia política foi traduzida até 1930, através de uma sucessão de paulistas e mineiros na presidência da República, representantes das oligarquias mais poderosas do período. De um lado a oligarquia paulista, tendo seu poder e riqueza baseada nos cafezais e na incipiente indústria. De outro a oligarquia mineira, com seu prestígio alicerçado no maior contingente eleitoral do país.
 
A disputa pela presidência da República no ano de 1929, onde o governo federal, em desacordo com o tradicional pacto oligárquico, lançou a candidatura do paulista Julio Prestes, teve como resposta imediata a formação de uma coligação oposicionista – a Aliança Liberal - que lançou a candidatura de Getulio Vargas. A disputa entre candidato do governo e candidato da oposição representou a transferência das disputas políticas para o cenário da Capital Federal, gerando um clima de instabilidade política e desordem.
 
Esta competitividade não passará despercebida aos periódicos publicados na capital da República onde será tema de artigos, editoriais e charges. Entre estes periódicos está O Malho, criado em 1902 e com circulação até 1954, que possuía um perfil de crítica política bastante significativo.
 
É importante destacar o papel de O Malho no conjunto das Revistas Ilustradas produzidas no início do século XX. As inovações tecnológicas foram fundamentais para o fortalecimento das Revistas Ilustradas como um veículo de comunicação que atingiram um número cada vez maior de leitores. Agindo como formadores de opinião, estes veículos utilizavam as charges como instrumento de construção e de disseminação de referências sociais.
 
Utilizadas deste o período monárquico, as charges ganharam progressivamente um maior espaço nos jornais e nas revistas. Através das charges assinadas por caricaturistas que se consolidaram como intérpretes sociais que fizeram parte do seu quadro, O Malho retratou os conflitos e divergências políticas da época.
 
 

Dele pode-se dizer que foi a única revista de caricaturas a reproduzir na República os grandes tempos de suas congêneres do Segundo Reinado, nada poupando aos adversários, como no caso da Campanha Civilista, combatendo Rui Barbosa, e na Revolução de 30, ridicularizando os candidatos da Aliança Liberal (LIMA, 1963: 146).
 
 
A utilização de imagens de índios em O Malho era corrente, seja através de desenhos, propagandas ou fotografias. No caso das charges, imagens de índios ou de práticas indígenas foram utilizadas a fim de classificar ações políticas. Como no caso da campanha presidencial em 1929 onde, através das imagens aqui trabalhadas, a revista contribuiu tanto para a construção de determinadas representações – sobre a Aliança Liberal – quanto para a manutenção e reafirmação de outras – sobre os índios e as práticas antropofágicas.
 
Comecemos pela charge publicada na capa da revista no dia 17 de Agosto de 1929, intitulada OS ANTROPOPHAGOS. Um grupo de homens fantasiado de índios está reunido em volta de uma fogueira. A mesma é alimentada pelo "DESPEITO" e um homem identificado como "LIBERAL" está sendo assado. No canto esquerdo do quadro, o candidato do governo à Presidência da República JULIO PRESTES ri da situação e emite sua opinião a respeito do acontecimento: "Alli assa liberal...".
 
 
 
O Malho, 17/08/1929. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
 
 
Além de cumprir sua função, que é fazer rir, a charge "traz também em sua substância motivos para reflexões nem sempre superficiais (LIMA, 1963:26). Em primeiro lugar, devemos estabelecer uma relação entre a imagem e legenda. O texto guia o leitor para uma interpretação da imagem fazendo que o receptor leia e receba determinados significados e abandone outros. O texto tem um papel de elucidação seletiva, pois direciona a interpretação da imagem para uma determinada mensagem.
 
 
[...] o texto é o direito de olhar do criador (e logo, da sociedade) sobre a imagem: a ancoragem é um controlo, ela detém uma responsabilidade, face ao poder projetivo das figuras, sobre o uso da mensagem; em relação à liberdade dos significados da imagem, o texto tem valor repressivo, e compreende-se que seja ao seu nível que se investem, sobretudo a moral e a ideologia de uma sociedade (BARTHES, 1984:35).
 
Partindo deste pressuposto, podemos dizer que o jogo de palavras utilizado pelo cartunista na legenda encaminha o entendimento da mensagem para uma direção, que é fazer com que o leitor através da imagem associada à antropofagia - a fogueira, o homem sendo assado e cercado por um grupo de índios guerreiros - identifique o DESPEITO como o sentimento que inflama e conduz as ações dos integrantes do partido oposicionista (Alli assa liberal) ao mesmo tempo em que coloca este sentimento como uma característica moral do partido (Aliança Liberal).
 
A campanha da Aliança Liberal foi ridicularizada incessantemente pela revista e as ações conjuntas ou individuais dos integrantes do partido não escaparam de julgamentos morais e políticos, servindo de subsídio para a construção e divulgação de uma imagem negativa do mesmo. A charge OS AMIGALHÕES!, publicada em 05 de Outubro de 1929, também nos permite fazer uma análise sobre este ponto. Podemos ver no canto esquerdo da cena, uma índia velha, vestindo apenas uma tanga e colares de ossos e que está amarrada a um tronco que traz a inscrição: ALLIANÇA LIBERAL. A mesma está cravada de flechas. Cada flecha traz uma referência, transcrita abaixo na ordem de cima para baixo:
 
Carta de 10 de Maio – - Getúlio
Entrevista A Noite –- Borges
Carta pedindo a intervenção do presidente da República na escolha do seu sucessor -– Antonio Carlos
Ameaças de Revolução –  Neves da Fontoura
A Alliança Liberal não tem princípios –  A. Bernardes
Discursos desastrados do Leader Liberal –  Zé Bonifácio
Reprovação ao Manifesto liberal  – Assis Brasil
Carta a Epitácio implorando um acordo –  Mello Franco.
 
 
Do outro lado da cena, um grupo de integrantes da Aliança Liberal, entre eles Getúlio Vargas e Antonio Carlos, estão fantasiados de índios. Cada personagem segura um arco e estão numa posição que indica que acabaram de lançar as flechas. No canto do quadro, Zé Povo assiste a cena e comenta sobre ela: "Como eu estava enganado... Eu supunha que todos esses antropophagos fossem contra o Julio Prestes".
 
 
 
O Malho, 05/10/1929. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
 
 
É através do humor que a charge exerce o papel de crítica política, agindo como "porta voz da sociedade, interpretando a notícia, expressando um ponto de vista, transformando o fato numa consciência sobre ele (TEIXEIRA, 2005:75). Neste sentido, podemos ver que o movimento contrário à candidatura de Júlio Prestes foi relacionado pela revista ao despeito e a interesses privados. A atitude do governador mineiro em não aceitar a indicação feita pelo então presidente Washington Luís, que, conforme a tradição da política dos governadores garantiria a vitória do paulista à presidência da República, foi entendida como antipatriótica. Ambições políticas e pessoais teriam sido colocadas acima do interesse público. Assim como o mineiro Antonio Carlos, os integrantes do partido viam na oposição uma possibilidade de uma participação política que até então lhes havia sido negada.
 
A Aliança Liberal, na concepção da charge, não era um Partido no sentido stricto senso, mas uma reunião de indivíduos sem caráter moral, que agiam de forma independente e a serviço de ambições pessoais. Sendo assim, nada mais coerente com esta concepção do que as atitudes apontadas na charge como, por exemplo, a citação da carta enviada à Washington Luis por Getúlio Vargas, onde o gaúcho garantia o seu apoio e o do Partido Republicano Rio-Grandense ao então presidente. A adesão do partido gaúcho à oposição foi a quebra de um princípio elementar nas relações políticas e pessoais: o cumprimento da palavra.
 
Divisões dentro do próprio partido fizeram com que seus integrantes buscassem apoio para candidaturas estaduais na oposição. Grupos que viam a impossibilidade de vitória da Aliança Liberal, devido às fraudes eleitorais características do período, defendiam a luta armada em nome do partido, mesmo existindo dentro dele opiniões contrárias a esta posição. Integrantes do partido davam declarações contrárias às propostas partidárias. Essas ações, ao contrário do que se pretendia e como afirmam as palavras do Zé, apenas fortalecia a candidatura de Júlio Prestes e provocava um clima de disputa de egos entre os próprios aliados.
 
É preciso considerar que a leitura da charge não é anárquica. A construção e leitura da imagem se fazem através de um compartilhamento de saberes entre artista e leitor, isto é, seus símbolos e signos são possíveis de construção e de interpretação por fazerem parte de um mesmo código cultural. A partir deste pressuposto, podemos pensar na apropriação da imagem de índios nas duas charges para fazer referência a uma determinada situação política. Este recurso dos cartunistas nos permite fazer algumas conjecturas a respeito da visão sobre os indígenas e suas práticas culturais na sociedade brasileira na Primeira República.
 
É importante perceber que os personagens das charges não são indígenas e sim, políticos da Aliança Liberal vestidos de índios. Na verdade, a representação de índios e a pratica antropofágica são elementos utilizados a fim de descrever e dar função pejorativa às disputas e conflitos internos do partido. O que vemos nestas charges é a produção de personagens fictícios, mas que possuem uma identidade comum com sujeitos reais.
 
A leitura e reconhecimento desta identidade comum se fazem através de um código cultural e de um consenso partilhado a respeito deste sujeito.
 
 

[...] a charge produz a identidade do sujeito através de uma relação entre ele e um personagem diferente dele, para identificá-los entre si, e assim, ressaltar sua identidade recíproca (TEIXEIRA, 2005: 75).
 
Sendo assim, as charges não apresentam índios verdadeiros, pois não é sobre eles que as mesmas pretendem falar. Os políticos integrantes da Aliança Liberal são apresentados como índios porque o imaginário a respeito das populações indígenas, associado à barbárie e à incivilidade, permite estabelecer uma chave de interpretação para o leitor da mensagem que o cartunista pretende passar.
 
A antropofagia é utilizada para descrever e se referir a uma situação onde, para os chargistas da revista, os políticos da Aliança Liberal perderam todas as noções básicas de "civilidade" e atacam uns aos outros. Quando o Zé Povo diz que achava que os antropófagos Liberais eram contra o Júlio Prestes, seu inimigo político, ele faz uma referência aos rituais antropofágicos praticados pelos indígenas brasileiros, onde os inimigos capturados nas guerras intertribais eram sacrificados e comidos. Mas no caso da Aliança Liberal, a antropofagia se tornou uma guerra que extrapolou todas as regras e procedimentos tradicionais, pois ao contrário da tradição Tupi, onde somente os inimigos eram atacados e sacrificados, os liberais estavam atacando e "devorando" os membros da própria "tribo".
 
Desta forma, as ideias e conceitos a respeito das práticas indígenas, como a antropofagia, são vistas e utilizadas como uma representação da desordem. As disputas internas e conflitos de interesses dentro da Aliança Liberal são vistos como atos de barbárie e incivilidade. Mesmo que esta representação não seja verdadeira, pois se deve levar em consideração a especificidade dos rituais antropofágicos, é possível perceber uma determinada visão a respeito destes mesmos rituais e dos índios pela sociedade brasileira.
 
Essas percepções servem para qualificar determinados atos e atitudes como no caso da Aliança Liberal. Os dois termos – canibalismo e antropofagia – são utilizados para expressar a mesma situação. Antropofagia como ritual guerreiro e canibalismo como expressão da barbárie. Apesar de serem distintos, os termos se confundem e expressam uma só ideia: selvageria, traição, barbárie e incivilidade.
 
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
 
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984.
 
LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, 1988.
 
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Volume I. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1963.
 
MONTEIRO, John Manuel. Tupi, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas: UNICAMP, 2001.
 
NEVES, Margarida de Souza. "Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX." In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
 
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1557). São Paulo, Ed. Itatiaia e EDUSP, 1974.
 
TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005.
________________________"O traço como texto: a história da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930". Cadernos Avulsos. Rio de Janeiro: FCRB, nº 38, 2001.
 
THÉVET, André. As singularidades da França Antártica.(1558). São Paulo, Ed.Itatiaia e EDUSP, 1978.







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