quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Sincretismo e identidade religiosa na Festa de São Jorge na Umbanda



Trabalho de final de Curso apresentado à Disciplina História Oral e Antropologia: Estratégias Comuns e Especificidades na Pesquisa de Campo, ministrada pelo Prof. Dr. Milton Guran, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, no primeiro semestre de 2014.



O relato mais popular e conhecido no Brasil sobre a origem de São Jorge data de 916 e apresenta o santo como um soldado do exército romano. Natural da Capadócia, atual Turquia, São Jorge tornou-se cristão aos vinte e três anos de idade e diante da ordem do imperador Diocleciano de matar todos os cristãos do império, recusou-se a obedecer provocando a ira do imperador, que ordenou sua prisão. Mesmo diante de muitos suplícios, o santo não renegou sua fé e inconformado com a sua resistência, Diocleciano mandou decapitá-lo no dia 23 de abril de 303.

Segundo Georgina dos Santos, São Jorge conta com mais de um relato hagiográfico e o santo dialogou com diversos mitos da antiguidade até assumir a feição lusitana que os colonizadores portugueses trouxeram para o Brasil: identificada com a imagem de um guerreiro intrépido e vitorioso, protetor de gentes e territórios e defensor da fé católica. O encontro do santo com os deuses africanos é um “dos muitos capítulos que compõem a história da devoção ao mártir no Ocidente”.

Nos rituais umbandistas do Rio de Janeiro,  o simbolismo de soldado guerreiro terminou por associar a imagem do santo católico a Ogum, orixá trazido pelos negros escravos do Golfo da Guiné, Senhor da Guerra, indomável e imbatível defensor da lei e da ordem, guardião cujo papel é de defender dos fracos, proteger as estradas e os que estão sob demanda. Por causa da sua característica guerreira, São Jorge é considerado o santo que protege seus fiéis da inveja, olho grande, trabalhos de bruxaria, afasta as negatividades. 

A proposta deste trabalho é apresentar a festa de celebração do dia de São Jorge ocorrido no Centro de Umbanda Caboclo Sete Flechas, localizado no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro, procurando destacar o sincretismo entre religião católica e africana presente no ritual. Esta celebração acontece todos os anos desde que o terreiro passou a ser dirigido pelo pai de santo Silmar Alves, na década de 90. Antes disso, o terreiro era presidido por seu pai, Adelson Alves, que mantinha as cerimônias e rituais apenas no seio familiar e não realizava as sessões nem as festas públicas que hoje ultrapassam os limites físicos do terreiro e tomam as ruas da comunidade. 

Para Stuart Hall, sincretismo não é um termo com significado fixo, pois seus sentidos foram historicamente constituídos e reconstituídos. Identificar um ritual ou tradição como sincréticos é dizer pouco, pois todas as religiões têm origens compostas e são continuamente reconstituídas. O autor, que em seus estudos trata os encontros culturais entre sociedades colonizadoras e colonizadas em termos de tradução cultural ou transculturação, entende hibridismo, sincretismo e identidades diaspóricas como conceitos que procuram descrever as situações onde qualquer tentativa de “retorno às origens” em termos étnicos já não são mais possíveis, já que a experiência colonizadora é irreversível.

Desta maneira, a tradução cultural é um processo de negociação entre antigas e novas matizes culturais, vivenciadas por pessoas que tem diante de si uma cultura que não as assimila e ao mesmo tempo não perdem completamente suas identidades originárias, mas precisam negociar constantemente com as duas realidades. Neste sentido, a tradição é mais um repertório de significados do que uma doutrina, já que a hibridação cultural traz ao sujeito novas formas de significação que, muitas vezes, são totalmente opostas às suas matrizes culturais de origem. 

A escolha de acompanhar esta festa e não a “tradicional” festa católica que também acontece todos os anos na Igreja de São Jorge, no Centro do Rio de Janeiro, tem razões pessoais: primeiro, um certo desconforto causado pelas constantes críticas que esta e outras festas realizadas pelos fiéis provocam na vizinhança – consideradas alteração da ordem e ocupação indevida do espaço público – e segundo, a necessidade de entender e conhecer não só a festa, mas também um pouco da religião que durante muitos anos me foi apresentada como “coisa do Diabo” por meus familiares de denominação protestante. 

Para realizar esta descrição, vali-me da utilização de imagens produzidas durante a festa e de entrevistas realizadas durante e após a mesma. Durante a festa, uma vizinha praticante da religião e filha de santo deste terreiro, a Eliane, serviu-me de informante orientando sobre cada momento do ritual e o que ela achava importante registrar. Esta informante não se permitiu fotografar nem conceder uma entrevista “formal”, por se julgar sem cabedal suficiente para realizar esta tarefa. Mas, durante a cerimônia pude perceber que embora se considerasse desconhecedora dos arcabouços teológicos da sua religião, sua prática enquanto fiel lhe fornecia sim cabedal e autoridade para falar e orientar um leigo sobre a mesma e sobre as práticas rituais, como acabou demonstrando durante suas indicações durante a festa. 

Ela sugeriu, além da entrevista com o pai de santo do terreiro, que eu entrevistasse a mãe pequena do mesmo, que além de ter “mais conhecimento do que ela”, também é filha de Ogum. Mas a minha opção foi a de aproveitar neste trabalho as informações passadas por ela de maneira informal justificada pelas observações que já relatei acima. O outro entrevistado foi o pai de santo do terreiro, Silmar Alves, alguns dias após a ocorrência da festa. 

Neste sentido, as imagens apresentadas neste trabalho foram produzidas e utilizadas tanto “para descobrir” - servindo como uma forma de familiarização com o tema e como auxílio na obtenção de informações - tanto “para contar”, neste caso servindo como elemento constitutivo da narrativa e das conclusões alcançadas ao final da pesquisa.



A FESTA DE SÃO JORGE NO TERREIRO CABOCLO SETE FLECHAS 


O Centro de Umbanda Caboclo Sete Flechas é um terreiro passado de geração para geração. O pai de santo Silmar Alves, de 43 anos, representa a terceira geração do terreiro e herdou a direção do mesmo quando seu pai faleceu em 1992, que por sua vez o tinha recebido como herança de seu pai. O terreiro está instalado no andar inferior da casa da família. Seu espaço físico é pequeno, da porta de entrada vemos o altar em forma de pirâmide composto por imagens de santos católicos e figuras que representam as entidades da umbanda. A organização do altar representa a hierarquia dos santos e entidades cultuados no terreiro. No topo da pirâmide, está a imagem de Jesus, que na umbanda representa Oxalá. 


Na segunda linha, são os santos que trabalham comigo, os que dão 
consulta, os que fazem as curas, os que dão os passes: Boiadeiro, Cosme e Damião, Santo Expedito – que é o dono da casa -, Cabocla Jurema. E na linha de baixo, os santos que são representados pela Igreja Católica também: São Pedro, São Jorge, São Miguel, Santo Antonio, São Benedito, São Francisco. E aqui à frente vem as entidades que eu trabalho: Sete Flechas, Pai Cipriano, Seu Marinheiro. Aqui na parte de baixo tem os Pretos Velhos – que são os africanos -, aqui no meio tem o povo da água – que é Iansã, são as Iabás, Iemanjá – e aqui no canto, São Lázaro, que rege toda essa parte de doenças, cura, toda essa parte da saúde. 




Pai Silmar – Líder espiritual do Terreiro Caboclo Sete Flechas



Altar principal do Terreiro Caboclo Sete Flechas



É interessante observar que as entidades da umbanda – Caboclo Sete Flechas, Pai Cipriano e Seu Marinheiro, por exemplo – não são representados por santos católicos como os orixás. Segundo Pai Silmar, “eles são pessoas que viveram na Terra como nós, que pelo seu mérito se tornaram espíritos”.


Ao fundo, no canto esquerdo se localiza outra mesa onde o pai de santo dirige as cerimônias, cantando e chamando as entidades e onde também realiza palestras sobre a doutrina da umbanda nas sessões sem incorporação. Esta mesa também traz algumas imagens católicas e acima dela há um quadro que representa o episódio bíblico da Santa Ceia. 



Altar lateral onde se realizam as cerimônias do terreiro


A forte presença de imagens católicas presentes no terreiro e que são associadas às entidades foi explicada pela Eliane, minha informante, como uma herança da escravidão, já que obrigados a professarem a fé católica e proibidos de exercerem sua religião de origem, os escravos recorreram à estratégia de associar as entidades religiosas africanas aos santos católicos. Desta maneira, conseguiam praticar seus rituais ancestrais sem levantar suspeitas e sem a repressão da Igreja. Na sua maioria, os orixás e entidades são como os santos católicos que estão disponíveis para atender os pedidos dos fiéis que buscam resolver problemas de saúde, sucesso no trabalho, “coisas boas” para si ou seus familiares. 

Durante a festa, percebi que houve dois momentos: uma cerimônia ocorrida dentro do terreiro e outra realizada na rua. Somente depois da festa, durante a entrevista com Pai Silmar, é que fiquei sabendo que a festa realizada naquele dia não era apenas para São Jorge, mas também em homenagem a Santo Expedito, que tem seu lugar de comemoração no dia 21 de abril. Ambos são padroeiros do terreiro, sendo Santo Expedito – que representa Ossã – o “chefe da cabeça” de Pai Silmar e conseqüentemente, chefe do terreiro. Assim como São Jorge, Santo Expedito é um santo guerreiro e é representado na figura de um soldado romano. Então, o primeiro momento da cerimônia ocorrida dentro do terreiro foi em homenagem a Santo Expedito e o segundo momento, na rua, foi em homenagem a São Jorge.


Além das festas de São Jorge e Santo Expedito, outras grandes festas realizadas no terreiro são as de Preto Velho, Povo de Rua e Cosme e Damião. Para outras entidades também são realizadas comemorações, mas bem menores como as de São Pedro, Nossa Senhora da Conceição (as Iabás), Santa Bárbara, Iemanjá, entre outras.


Minha informante Eliane me acompanhou até a entrada do centro, chamando a atenção para a importância do registro da cerimônia desde o início. As filhas e filhos de santo ajoelhados formavam um círculo em torno do terreiro e faziam as orações puxadas pelo pai de santo – Ave Maria, Pai Nosso e Creio em Deus Pai. É a oração para “bater cabeça”, conforme informou Pai Silmar.  Após as orações, filhos e filhas de santo liderados por Pai Silmar, começaram a entoar cânticos e em movimento circular começaram, um a um, a reverenciar o altar principal e a cumprimentar os integrantes da mesa e o pai de santo.

Pai Silmar se situava no altar lateral acompanhado por sua mãe, Dona Cléa, e outras anciãs. Os fiéis faziam os cumprimentos à mesa a partir da primeira senhora que estava sentada na lateral do altar, passando para outras duas até chegar na Dona Cléa e, finalmente no pai de santo. Estas senhoras ocupavam na festa um lugar de destaque pelo fato de serem as fiéis mais velhas e consequentemente, as que têm “mais tempo de santo”. Irmãs da Dona Cléa, vieram de Santa Maria Madalena especialmente para a festa e, seguindo a tradição da família, também possuem um terreiro de umbanda  na cidade, que herdaram de seus pais. Dona Cléa, por ser viúva do falecido pai de santo do terreiro cumpre o papel de “presidente da comunidade espiritual".


Fiéis em momento de oração


Reverência ao altar


Cumprimento aos integrantes da mesa


Pai Silmar e Dona Cléa, sua mãe e a presidente da comunidade espiritual


O ritual de iniciação – que começou com as orações e o cumprimento do altar e integrantes da mesa – continuou com a entoação dos cânticos para “chamar as entidades”, neste caso, os caboclos, que na umbanda são representados por Santo Expedito.  O primeiro a receber uma entidade foi de Pai Silmar, que como chefe do terreiro, é o primeiro a ser incorporado. Ao “receber” o santo de sua cabeça, recebeu de um filho de santo um cocar e foi cumprimentado pelos outros filhos de santo. Após os cumprimentos e alguns momentos de cânticos puxados pelo pai de santo incorporado, outros filhos e filhas de santo começaram a incorporar.


Cada um recebe um caboclo diferente. O Caboclo são várias entidades, são Sete Flechas, Caboclo da Jurema, Seu Rompe Mato. E quando seu Sete Flechas chega, todo mundo vai cumprimentar ele.


Pai Silmar incorporado com o Caboclo Sete Flechas


Santo Expedito rodeado pelos Caboclos


Filha de santo reverenciando o Caboclo Sete Flechas


Após quase uma hora de cânticos e incorporações, os caboclos foram embora e foi instalado um intervalo. Durante este período, foi servida uma feijoada que foi preparada pelas filhas de santo a todos os que estavam presentes na festa. Apesar da festa ser em homenagem aos dois santos padroeiros do terreiro, a comida servida foi a de Ogum/São Jorge.


Ela (a comida) tem uma função, um símbolo. Para cada entidade tem uma comida diferente. No caso de São Jorge é feijoada de feijão vermelho. Já para Preto Velho é feijoada de feijão preto.


Além da comida específica do santo, a feijoada de feijão vermelho, a bebida específica do santo, a cerveja branca, também era consumida pelos presentes na festa, tanto durante a refeição como durante a cerimônia. A bebida também estava presente no altar principal junto à imagem do guerreiro e também junto aos fiéis no segundo momento da cerimônia, quando as homenagens se voltaram para ele. A maioria dos fiéis utilizavam a cor de referência do santo nas vestimentas: vermelha e branca. Já as guias que os fiéis traziam presos ao corpo faziam referências, pelas cores, não só a São Jorge/Ogum (que também é representado pelas cores azul e branco) como também às entidades pessoais de cada um.


Imagem de São Jorge no altar principal do Terreiro



Filhas de santo vestidas com as cores de São Jorge



Filhas de santo vestidas com as cores de São Jorge


Depois da refeição, os fiéis se deslocaram para a rua e em frente ao terreiro, deram início à segunda parte da festa. Considerado o orixá responsável por “abrir os caminhos”, a realização da homenagem a Ogum do lado de fora do terreiro cumpre uma função simbólica. Seguindo os mesmos parâmetros do ritual realizado em homenagem aos caboclos representados por Santo Expedito, os cânticos entoados exaltavam Ogum e chamavam a presença de entidade e o primeiro a receber a incorporação foi o pai de santo, que recebeu Ogum de Ronda. Também foi cumprimentado e abençoou todos os presentes, tanto filhos de santo como os que assistiam a cerimônia. Após ser cumprimentado e reverenciado pelos presentes, os cânticos se reforçaram e logo os filhos de santo começaram a receber cada um o seu Ogum específico.


É assim, se eu estou com Ogum de Ronda, outra pessoa não pode incorporar a mesma entidade, ela está com outro Ogum: Ogum Beira-Mar, Ogum Sete Ondas... A diferença está nos domínios. Tem Ogum que seu domínio é a falange da Mata – Ogum Rompe Mata. Ou Ogum Beira Mar – da praia - , Ogum Sete Ondas – da praia. Ogum Xeroquê, são caminhos, estradas. Outros têm regência pela linha do trem.



 Ao contrário do ritual em homenagem a Santo Expedito, a homenagem a São Jorge/Ogum contou com um número maior de fiéis. Além disso, os cânticos e as palmas durante a cerimônia pareceu estar sendo entoados com mais fervor e as danças, assim como as incorporações, se deram de maneira mais vigorosa. Durante todo o momento das incorporações, o público presente que assistia a cerimônia procurava os incorporados e os reverenciavam recebendo um sinal de benção em troca.



Tambores embalam os cânticos em homenagem a Ogum



Pai Silmar e seus filhos e filhas de santo dançam incorporados por suas respectivasentidades



Pai Silmar e seus filhos e filhas de santo dançam incorporados por suas respectivasentidades



Pai Silmar, que estava incorporado com a entidade Ogum de Ronda, e sua irmã Sueli (que é a Mãe Pequena do terreiro e a segunda pessoa na hierarquia depois do pai de santo), que estava incorporada com a entidade Ogum Iara, eram os únicos fiéis que traziam uma espada na mão. Enquanto dançavam, cruzavam a espada no ar e com ela abençoavam os fiéis que os procuravam para pedirem sua benção. Num determinado momento da cerimônia, enquanto dançavam percorrendo o interior da roda formada pelos fiéis, os dois incorporados se encontraram e protagonizaram uma cena onde cruzaram suas espadas por diversas vezes. Minha informante Eliane me esclareceu que aquela cena representava o tempo da guerra, pois aqueles santos haviam sido soldados em sua época.

Uma das justificativas apresentadas pela minha informante para que eu entrevistasse a Mãe Pequena Sueli e não a ela, além de considerar que ela tinha mais conhecimento sobre a religião e a festa devido ao seu papel dentro da comunidade religiosa, era o fato da mesma ser filha de São Jorge e Ogum Iara ser a entidade da sua cabeça na umbanda. E também me relatou uma prática bastante comum entre os católicos também seguido pelos adeptos da umbanda: as promessas feitas aos santos na busca por graças. 

O filho mais novo da mãe de santo ficou muito doente quando nasceu, sendo até mesmo desenganado pelos médicos. Então, por ser filha e devota de São Jorge, ela fez uma promessa e foi atendida: seu filho teve a saúde completamente restabelecida. Como cumprimento da promessa, ela leva o filho todo ano até a Igreja de São Jorge no seu dia e na hora da festa no terreiro faz uma homenagem especial ao santo.

A prática de ir à Igreja de São Jorge assistir à missa católica, comungar e depois participar da homenagem ao santo nos terreiros de umbanda é bastante comum entre os que se declaram devotos do santo. O pai de santo do terreiro também afirmou que segue o mesmo ritual de vários devotos: vai à Igreja de São Jorge para assistir a missa católica da alvorada e depois retorna para o terreiro para preparar a festa.



Cena de luta representada por Pai Silmar e Mãe Sueli incorporados com a entidade Ogum



Mãe Sueli abençoa um dos fiéis com a espada de Ogum

Depois que se encerraram as danças, cantos e incorporações, os fiéis retornaram para o interior do terreiro. Assim como no início do ritual, formaram um grande círculo e liderados pelo pai de santo novamente rezaram a Ave Maria, Pai Nosso e Creio em Deus Pai. A festividade foi encerrada com o cumprimento feito ao chefe do terreiro, que desta vez estava acompanhado por alguns fiéis e não mais por sua mãe e as anciãs do terreiro.



Fiéis se despedem do chefe do terreiro ao final da festa de homenagem a São Jorge

A pluralidade, a mistura, a diáspora - características da realidade brasileira e das religiões afro-católicas – estavam visivelmente presentes não apenas no ritual descrito acima, como também na maneira como os fiéis que participavam da festa vivenciam sua fé e sua devoção. O contato múltiplo entre culturas sempre foi característico de nossa sociedade, sendo esta formada com a contribuição de diversas culturas procedentes dos continentes africano e europeu somadas às numerosas populações indígenas.

O projeto colonial português da atuação missionária católica na colônia, marcada pela unicidade religiosa (cristã), sob a qual congregava todos os indivíduos (portugueses, índios e negros), objetivando uma coesão institucional (tanto religiosa quanto laica), que determinou a proibição de cerimônias religiosas não cristãs, ao mesmo tempo abriu possibilidades aos africanos escravos e libertos de reunirem-se em torno do seu culto sob o manto do catolicismo através das confrarias religiosas. Estas, conforme Roger Bastide, foram verdadeiros nichos de sobrevivência religiosa que proporcionaram aos escravos (devotos dos padroeiros das confrarias) reconstruírem, a partir do novo contexto, a sua identidade africana, deixando entrever que “[...] o catolicismo se sobrepôs à religião africana durante o período colonial, mas não a substituiu”.

Segundo Vagner da Silva, a associação entre deuses das várias etnias africanas já ocorria antes dos africanos escravizados chegarem ao Brasil. Diversos fatores contribuíam para essa associação, como as semelhanças existentes entre o conceito de orixá dos iorubás, de vodum dos jejes e de inquice dos bantos. Além disso, essas entidades eram vistas como forças espirituais humanizadas com características físicas e qualidades próprias e algumas viveram na terra antes de se tornarem espíritos divinizados. Desta maneira, as entidades africanas se aproximavam dos santos católicos, que por sua vez também foram santificados em função de suas vidas na terra.

Os cultos aos santos católicos trazidos pelos portugueses influenciaram os negros escravizados favorecendo novas reinterpretações e novas construções identitárias. Neste sentido, não apenas o ritual umbandista descrito acima como também o culto a São Jorge não são apenas fruto de um processo de adaptação, mas de um processo resultante do choque, do conflito e da tensão da diferenciação cultural. Isto porque a cultura não é estática e essencialista, mas algo dinâmico, aberto e em constante transformação – ela é transnacional, já que carrega marcas de diferentes experiências e memórias e é tradutória, pois exige uma ressignificação dos símbolos culturais tradicionais.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1971. Vol. 1.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

GURAN, Milton. Considerações sobre a constituição e a utilização de um corpus fotográfico na pesquisa antropológica. In: Discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.77-106, jan./jun. 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª.ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
___________ Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

MARQUES, Adílio Jorge; MORAIS, Marcelo Alonso. O sincretismo entre São Jorge e Ogum da Umbanda: ressignificações de tradições europeias e africanas. In: Anais do III Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades - ANPUH Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. In: Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011.

SANTOS, Georgina Silva dos. À Sombra da Inquisição: a trajetória do culto a São Jorge na Lisboa do Antigo Regime. Palestra para o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, em 2006. Disponível em
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4205237/4101460/palestra_quartas_GEORGINA_2006.pdf. Acesso em 27jun2014.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. 3ª ed. São Paulo: Editora Selo Negro, 2005.

SOUZA, Lyn Mario T. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Professora, indigenista, feminista: as múltiplas faces de Leolinda Daltro






Leolinda Daltro, 1890.
Fonte: Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsinba da Fonseca, 1920.

Uma mulher, diversas faces. Leolinda de Figueiredo Daltro nasceu na Bahia, em 1859. Viveu a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro, onde morreu em 1935. Professora primária, ganhou notoriedade na cidade por sua atuação no movimento pelos direitos das mulheres quando fundou o Partido Republicano Feminino, em 1910.


Feminista. Esta é uma das faces mais conhecidas desta professora e que faz parte da abordagem da maioria dos trabalhos acadêmicos desenvolvidos sobre ela ou sobre a história do feminismo no Brasil. Não é sem razão, já que ela é considerada uma das percussoras do movimento feminista no Brasil. A primeira investida de Leolinda no feminismo se deu em 1909, quando organizou uma agremiação de mulheres que colaborou com a campanha  do marechal Hermes da Fonseca à presidência da República - a Junta Feminil Hermes/Wenceslau. As ativistas esperavam que, caso fosse eleito, Hermes da Fonseca concedesse direitos às mulheres, como o acesso ao voto, em resposta ao apoio recebido durante a campanha presidencial.

Em 1910, Leolinda entrou com um requerimento na justiça eleitoral para se alistar como eleitora, alegando que a Constituição de 1891 não negava este direito às mulheres (neste caso, ela seguiu o exemplo da advogada Myrthes de Campos, que foi a primeira mulher brasileira a fazer este requerimento). Com a negativa da justiça, ela fundou o Partido Republicano Feminino, voltado para a defesa do voto das mulheres. A criação do partido foi um movimento pioneiro na luta das mulheres  brasileiras em favor do direito ao voto. Durante sua luta, a professora foi vítima constante da imprensa, que insistia em critica-la e ridiculariza-la por suas ideias.

Dentre suas estratégias de conscientização e mobilização feminina, Leolinda Daltro organizou, em 1917, uma marcha pelas ruas do Rio de Janeiro com a participação de noventa mulheres. Em 1919, apresentou novo requerimento à justiça eleitoral e se candidatou ao cargo de intendente do Rio de Janeiro conquistando uma votação expressiva, mas sem conseguir se eleger. Sua última investida política foi em 1934, quando se candidatou à Assembleia Constituinte.


 
Folheto da campanha de Leolinda Daltro à Assembleia Constituinte.


Antes de se envolver no movimento feminista, a professora Leolinda Daltro atuou como indigenista e foi uma grande ativista em favor da implantação de uma educação laica para os índios do Brasil. Foi sua experiência como indigenista e, principalmente, as dificuldades que enfrentou para colocar em prática seu projeto educacional para os índios, que a levou para o movimento feminista.

Segundo ela, após anos de engajamento pela causa dos índios, de participação em congressos e até mesmo a criação de uma associação de defesa dos indígenas, havia a expectativa de sua parte em ser nomeada diretora em uma das diretorias de índios criadas pelo novo órgão governamental responsável pela inserção dos índios à comunidade nacional, em 1910 - o SPILTN ( Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais). Durante sua atuação na capital federal a favor dos índios, ela tinha estabelecido relações com o ministro da agricultura, Rodolpho Miranda, cuja pasta era responsável pela administração do SPLTN. Durante um encontro com o ministro, ela teria tido a oportunidade de apresentar seu projeto de educação e de fundação de uma colônia indígena em Goiás. Na ocasião, Rodolpho Miranda teria lhe prometido o cargo de diretora quando o órgão governamental fosse criado.
Mas após a criação do órgão, Leolinda Daltro foi esquecida. Não foi sequer convidada para a festa de inauguração. E ao procurar o ministro para cobrar o cargo prometido, teria ouvido que sua nomeação não seria possível, pois Candido Rondon havia sido nomeado diretor do SPILTN e, na condição de positivista, não aceitava a nomeação de mulheres para cargos públicos.
Na opinião positivista do Coronel Rondon, a mulher só tem competência para administrar o departamento culinário do lar, acalentar crianças, lavar e engomar, ou então passear pelas Avenidas, entregando-se aos prazeres do luxo e...e...basta.

Ainda segundo seu relato, foi a resposta do ministro que lhe incutiu a necessidade de organizar um movimento de contestação à discriminação da mulher e a favor do voto feminino.

Recebi as palavras do Ministro Rodolfo Miranda, como se fossem a declaração positiva da nulidade feminina, como se ouvisse uma legenda ignóbil da desmoralização do meu sexo! Senti, então, em mim despertar o espírito da revolta; compreendi ser necessário uma campanha persistente e tenaz no sentido de destruir o terrível preconceito.



A não inclusão de Leolinda Daltro nos quadros do recém criado SPILTN colocou por terra toda a esperança que a professora tinha de concretizar seus planos de educação indígena que havia se iniciado quatorze anos antes da criação do órgão governamental. A atuação da professora entre os índios se iniciou em 1896, quando decidiu atender o pedido de um grupo de índios Xerente que veio ao Rio de Janeiro solicitar ao presidente da República um professor para sua aldeia.

Sem auxílio governamental e contando apenas com ajuda de amigos e colaboradores simpatizantes da causa indígena, Leolinda passou cerca de cinco anos percorrendo os sertões de Goiás. Seu objetivo era fundar uma escola na aldeia dos Xerente, localizada às margens do rio Tocantins. Para realizar este empreendimento, deixou seu cargo de professora, sua casa e filhos pequenos sob o cuidado de terceiros.

Em Goiás, Leolinda encontrou aquele que seria um dos maiores obstáculos para implantação do seu projeto entre os índios: a oposição dos missionários católicos que atuavam no estado. A aldeia dos índios Xerente era administrada por um frade capuchinho que atuava na região há cerca de trinta anos - Frei Antônio de Ganges. A inserção da professora entre os índios foi visto como uma afronta e invasão de território pelo capuchinho.  Além do frade capuchinho, Leolinda teve que enfrentar a resistência dos missionários dominicanos que haviam acabado de inaugurar uma missão entre os índios Kayapó em Conceição do Araguaia. Ao retornar ao Rio de Janeiro, a professora acusou os frades não apenas de serem os responsáveis pelo fracasso da sua missão como também de tramarem diversos planos para assassiná-la. Seus relatos, publicados pela imprensa carioca, dão conta de que, além de tentar levantar recursos junto ao governo federal, seu retorno à cidade era também uma forma de se resguardar de seus inimigos, já que permanecer em Goiás representava um perigo à sua vida. 

Além da resistência dos missionários, a falta de recursos financeiros foi outro motivo que impossibilitou a implantação da escola indígena. Leolinda não conseguiu financiamento do governo estadual e a alternativa foi recorrer ao governo federal. Com este objetivo, ela retornou ao Rio de Janeiro, em 1900. Durante dois anos, apresentou para a imprensa e autoridades da Capital Federal o seu projeto de criação de uma colônia indígena às margens do rio Araguaia, onde os índios seriam educados sem influência religiosa e preparados para o mundo do trabalho.

Após dois anos no Rio de Janeiro, em 1902, a professora ficou sabendo pela imprensa que um novo grupo de índios havia chegado ao Rio de Janeiro. Ao procurar por eles, descobriu que este era composto por seus já conhecidos índios de Goiás. Segundo ela, a missão do grupo era leva-la de volta à aldeia. A visita dos índios foi a motivação que a professora precisava para fortalecer junto ao governo a sua campanha de criação da colônia indígena. Desta vez, ela pode contar com a ajuda de acadêmicos, políticos e com alguns órgãos da imprensa carioca.

Sua luta pelo retorno à Goiás resultou na criação de uma associação de proteção aos índios e diversas participações em congressos de várias instituições acadêmicas, onde ela aproveitou para apresentar um plano mais acabado de educação para os indígenas. Sua principal plataforma era a defesa de uma educação laica, voltada para a formação desses indivíduos como cidadãos e trabalhadores.

Os índios que vieram busca-la não retornaram para Goiás. Hospedados na casa da professora, passaram a receber a educação e a formação que ela pretendia implantar na sua desejada escola indígena goiana. Vestidos ao modo "civilizado", educados e formados profissionalmente, estes índios passaram a circular com Leolinda pela cidade do Rio de Janeiro visitando políticos, governantes, associações científicas e acadêmicas, servindo como modelo de seu projeto educacional.



Fonte: DALTRO, Leolinda. Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.


Sua proposta de catequese leiga para os índios se baseava como uma oposição à catequese religiosa, a partir da defesa de um currículo educacional com técnicas e formação profissionalizante, e também artes, ciência e literatura.



Tornei-os [os índios] cidadãos úteis, pois lhes dei profissão, sendo dois ferreiros, dois carpinteiros, um pintor e um mecânico, empregando-se este na Estrada de Ferro Central do Brasil como ajustador de máquinas, já tendo quase prontos os preparatórios para fazer exame na Escola Politécnica, quando foi vitimado pela gripo em 1918.


 Mas para a professora, não bastava transformar os índios em trabalhadores, ensiná-los a ler e escrever, vesti-los ao modo "civilizado". Era preciso investi-los de seus direitos de "cidadão da República". A completude da civilização estava no direito à cidadania e imbuída deste pressuposto, os alunos indígenas do sexo masculino foram inscritos como eleitores e participaram de uma eleição para deputados, em 1906 (provavelmente, são os primeiros índios eleitores da história do Brasil).


Recibo eleitoral de Djalma Uacumupté.
Fonte: DALTRO, Leolinda. Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.




Recibo eleitoral de Kuroki Porpipó.
Fonte: DALTRO, Leolinda. Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.


As índias mulheres receberam uma educação muito semelhante a dedicada às mulheres não índias: voltadas para a formação das mesmas como "boas mães de família", aprendendo tarefas domésticas e também atividades profissionalizantes.
Ás índias (duas cherentes, duas guaranys e uma caraó), além da mais per­feita educação doméstica que receberam, tornando-se bôas donas de casa, ensinei também profissões úteis. Fizeram-se habeis costureiras (a guarany e as cherente), constando-me que uma dellas tem officina de costuras em Goyas, revelando-se a caraó uma perfeita florista, sendo sua especialidade de trabalho de flores em pennas.
Fonte: DALTRO, Leolinda. Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.



Fonte: DALTRO, Leolinda. Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História. Rio de Janeiro: Typographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.

A proposta educacional de Leolinda Daltro para os índios se assemelha muito com a sua prática de educadora nas escolas públicas do Rio de Janeiro. A atuação pedagógica de Leolinda Daltro apresenta diversas características das ideias liberais que marcaram o início do século XX acerca do papel da educação para a construção da nação, para a modernização do país e para a moralização e disciplinarização da população. Durante anos, ela atuou em cursos noturnos atendendo alunos que estudavam durante o dia. Primeiro, trabalhou no Matadouro de Santa Cruz, depois no Engenho de Dentro e na Praia Pequena, onde atendia operárias da fábrica de fósforos Cruzeiro.
Transferida ainda por conveniência do ensino, e ainda por meio de dous – ABAIXO ASSIGNADOS – para a Praia Pequena, continuei com o CURSO NOCTURNO – no qual se matricularam sessenta e quatro operarias da FABRICA DE PHOSPHOROS CRUZEIRO, tendo eu a felicidade de en­sinar e educar pobres moças analphabetas, das quaes hoje são professoras cathedraticas, algumas floristas, modistas, etc. Esses cursos foram manti­dos GRATUITAMENTE, fóra do programma oficial e por minha propria conta...
Segundo seus relatos, sua pedagogia já era admirada desde os tempos do Império e seu programa educacional para jovens e crianças da cidade incluía aulas de ginástica, formação para o trabalho e exaltação dos valores nacionais. E a preocupação com a formação para o trabalho já estava presente na sua prática educativa.

O programma primário era, naquella época, por demais deficiente; o ensi­no limitava-se à leitura, escripta, grammatica e ás quatro operações funda­mentaes da arithmetica.
Achei que isso era pouco e que eu podia, como professora, amplial-o, o que fiz, inaugurando um novo regimen escolar. Iniciei, portanto, o ensino de ARTES E PROFISSÕES, de que o programma oficial não cogitava, de forma que as creanças cursassem, além das matérias do programma oficial, mais outras, facultando-lhes assim aptidões necessárias afim de que, ao sahirem da escola, podessem obter, com trabalho, os meios de subsistên­cia.
 
A preocupação com a educação feminina esteve sempre presente durante toda a carreira de Leolinda como professora. Após o episódio da exclusão do SPILTN, ela passou a se dedicar à luta pelo direito das mulheres e também à educação feminina. 
Em 1911, ela fundou a Escola de Artes e Profissões Orsina da Fonseca, voltada para a formação de mulheres. O ensino era gratuito e na escola as alunas aprendiam bordados, corte e costura, fabricação de chapéus, enfermagem, além das disciplinas elementares. A preocupação estava em possibilitar a essas alunas uma formação profissional que as possibilitasse obter meios de sobrevivência no caso de ficarem viúvas, e no caso de alunas com  poucos recursos, uma atividade econômica que as afastassem da prostituição.
Havia um rigor técnico e uma preocupação com qualidade do ensino, que Leolinda procurava suprir recrutando profissionais qualificados para o ensino de cada profissão, como o alfaiate que ensinava o corte de roupas masculinas, e o médico, que dava aulas de enfermagem.
O programma da escola é diffundir o ensino prático das profissões ade­quadas às mulheres. Alli elas aprendem a fazer chapéos, flores, bordados, cortar seus próprios vestidos e até cortar as roupas de seus maridos e filhos. Para isto pagamos um alfaiate que ensina a fazer roupas para homem.




A Noite, 03/08/1934.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional



Uma das últimas aparições de Leolinda Daltro na imprensa carioca foi no jornal A Noite, em 1934. O movimento feminista já havia garantido grandes conquistas, como o direito das mulheres se candidatarem e serem eleitas para cargos públicos, e tinha como principal ativista e representante a Dra. Bertha Lutz.

A reportagem alude o pioneirismo da professora e lamenta o esquecimento dado à ela pelas próprias integrantes do movimento feminista da época. Aos 75 anos de idade, ela participava ativamente das atividades da Escola Orsina da Fonseca e perguntada se depois de tudo o que fez ao longo da sua vida dava por acabada a sua luta em favor das mulheres, ela respondeu: 



Não! Enquanto puder hei de lutar pela mulher! Principalmente agora que ela começa a ter seus direitos reconhecidos pelos homens. Fui a primeira eleitora que se qualificou. O feminismo que eu preguei e defendi com enorme sacrifícios, não pregava diretamente a conquista de postos de representação.  Não tínhamos ambições pessoais. Queríamos, antes de tudo, dar à mulher um lugar melhor na sociedade, como elemento de progresso, libertando-a, tanto quanto possível, da escravidão e da situação de inferioridade em que viviam.

  
Leolinda faleceu no ano seguinte, em decorrência de um atropelamento numa das principais ruas da capital. Como  reconhecimento de sua atuação e importância na conquista dos direitos das mulheres, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) criou o diploma Mulher Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro, em 2004. O diploma é concedido àquelas que tenham contribuído na defesa dos direitos da mulher e nas questões de gênero.

PARA SABER MAIS:
ABREU, Maria Emília Vieira de. Professora Leolinda Daltro: uma proposta de catequese laica para os indígenas do Brasil (1895-1911). São Paulo: PUC SP, 2003.

CORRÊA, Mariza. Os índios do Brasil elegante & a professora Leolinda Daltro. In: Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
DALTRO, Leolinda. Início do feminismo no Brasil. Subsídios para a História. Rio de Janeiro: Tipographia da Escola Orsina da Fonseca, 1918.
_______________ Da catechese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História (1896-1911). Rio de Janeiro: Tipographia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.
GRIGÓRIO, Patrícia Costa. A professora Leolinda Daltro e os missionários: disputas pela catequese indígena em Goiás. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2013.
ROCHA, Elaine Pereira. Entre a pena e a espada – A trajetória de Leolinda Daltro: 1859-1935 – Patriotismo, indigenismo e feminismo. Tese de Doutorado. FFLCH-USP, 2002.